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A mostrar mensagens de 2011

Obras de arte não deveriam ter nome ou Conto de Natal quase surrealista

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Martha estava decidida a aproveitar aquela tarde entre o Natal e o Ano Novo para levar as filhas ao museu. Não tinha tido dúvidas na escolha do local. Embora a cidade tivesse uma oferta imensa, há muito que Martha elegera o melhor museu da cidade. Até já tinha lá levado as meninas, ainda pequenas, na esperança de despertar nelas precocemente o gosto que nela era inato. Não tinha tido muito sucesso e esperava agora poder cumprir esse desejo. Apesar das temperaturas negativas, o sol decidira espreitar por entre os palácios e nem mesmo a poluição das petroquímicas assombrou o cenário ideal para a ida ao museu. Vestiram-se casacos quentes, luvas, cachecóis e boinas de lã; calçaram-se as botas mais confortáveis. Martha enfiou na sua mala a tiracolo 2 bloquinhos de notas e 2 lápis. O metro deixou-as na praça do grande imperador. Começava a viagem. A exposição temporária de quadros surrealistas de um coleccionador privado no piso - 2 era a justificação que faltava para animar as meninas. Mart

Reflexões suspensas em torno de uma tradução e de uma entrevista a Steiner

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Acabei hoje de traduzir um artigo científico sobre o peculiar tema do erro profissional. Trata-se de um artigo de A. Leon de 1957 publicado na revista do centro francês de estudos e investigação psicotécnica (C.E.R.P.). Já nessa altura, o autor sublinhava a importância do fenómeno da generalização na génese dos erros profissionais, acreditando tratar-se de uma questão simultaneamente pedagógica e psicológica. Com base em estudos realizados, o autor demonstra que o mecanismo do erro resulta muitas vezes de um processo de generalização precipitado e de uma análise prévia insuficiente, consistindo na transposição mecânica de uma situação A para uma situação B: a aplicação de uma determinada regra, válida para um determinado exercício, é erradamente alargada a outros exercícios… No meu ofício de professora, assisti muitas vezes a este tipo de mecanizações: nenhuma regra de gramática é universal e as excepções não são excepcionais. Não sendo entendida na matéria, julgo que o mesmo se passar

O Sentido de um (do) Fim

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Quando a meio de uma grande empresa, gosto de fazer um desvio sem consequências. Tinha sido avisada por anteriores leitores d’A Montanha Mágica que esse desvio se imporia. O “meu” desvio chama-se “The Sense of an Ending” e é o mais recente proclamado Booker Prize de Julian Barnes. Devo confessar que fui mais pelo título do que pelo prémio (o que é um prémio afinal?). O livro tem, de facto, qualidade e recomendo. Como nunca tive jeito para a crítica literária, vou saltar resumo e considerações e ir directamente ao assunto. Quando terminei o livro (é indescritível esse momento suspenso do ponto final…), dei por mim a tentar relacionar o título do livro com o enredo (quem não o faz?). Nem os dois suicídios que assombram a história até ao fim me convenceram. Porquê de “um” fim? Porquê o artigo indefinido? Há mais do que um fim? O que é o fim? Aquilo a que vulgar e abusivamente se apelida de “fim” será mesmo um fim? O fim do dia, o fim do curso, o fim de uma relação, etc. Prefiro chamar-lhe

A vida nos bosques ou talvez não

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Passei a ter na mala apenas o telemóvel (para receber as chamadas da minha filha) e, dentro da carteira, o B.I., o Cartão Multibanco e o passe social. Retirei: a bolsinha da maquilhagem carregada de inutilidades, o kit de limpeza dos óculos, o pacote de lenços de papel, o bloquinho com as listas de compras, a caixinha dos cartões-de-visita, as chaves de todas as portas da casa, as pastilhas rennie, os pensos rápidos comprados aos putos romenos, etc., etc, Da carteira, retirei: o cartão das finanças, da segurança social, do centro de saúde, de pontos da Galp, da Repsol e da BP, do Continente e do Pingo Doce, os talões dos restaurantes e dos supermercados dos últimos 9 meses, etc., etc. O meu guarda-roupa passou a ser exclusivamente constituído por básicos confortáveis, sabrinas e sapatilhas. Abdiquei da maquilhagem, do secador de cabelo e da Epilady. Lá em casa, levei a cabo uma operação de limpeza radical: 2 carregamentos para a Remar e 3 sacos grandes da Toys’R Us (que a vizinha do 3.

Reposteiros

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Antes de abrir a porta, já sabia o que me esperava: o vazio. A minha ex aproveitou a minha viagem à Beira para despejar o apartamento. O “contrato” era aparentemente certeiro: quando decidimos juntar os trapos, eu comprei a casa, ela comprou o recheio e encarregou-se da decoração. Quando decidimos separar-nos, eu fiquei com a casa, ela com o resto. Bem vistas as coisas, até me correu bem: só tive de ir passar um fim-de-semana à terra natal. Não tive de me preocupar com caixotes e empresas de mudanças. Como homem prevenido que sou, trouxe da terra o saco-cama dos tempos do campismo em Mira. Não achei que precisasse de mais alguma coisa. Recusando-me a reocupar o quarto do meu descontentamento, instalei a minha nova cama na sala, junto à lareira, com a “cabeceira” virada para a janela. Para variar, queria adormecer a olhar lá para fora… Foi aí que me apercebi da “herança”… Não me lembro de ter desembolsado um cêntimo naquilo… A minha ex tinha-me deixado os reposteiros da sala pregados à

Óleo de Cedro

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Voltei hoje àquela praia após quinze anos. Assim que pus o primeiro pé na areia e a minha vista alcançou as barraquinhas, lembrei-me logo dela. Éramos vizinhos de praia. Reservávamos as barracas de um ano para o outro para conseguir os melhores lugares. Apesar de um ano inteiro sem contacto, sabíamos que, logo no primeiro dia, a menina Idalina - Lina para os amigos - lá estaria. Chegávamos por volta das nove e meia, eu, a minha mãe a minha irmã. Hei-de morrer sem ter visto o meu pai pisar a areia e ir ao mar. Quando chegávamos, a Lina já lá estava: - Gosto dos primeiros movimentos na praia – Dizia ela. Embora bastante mais novo, acho que tinha uma paixoneta pela Lina. Fingia não prestar atenção àquela “conversa de mulheres”, mas sorvia cada comentário, cada máxima, cada ritual, cada cheiro. Vinha sempre sozinha, nunca falou muito do resto da sua vida e dos restantes onze meses do ano. Essencialmente, “trabalhava para o bronze”: ia ao mar em linha quase recta, não fosse pelas

Sardinhas

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- Ó chefe, a sardinha é fresquinha? - É, sim senhora! Aqui não há sardinhas dos Intermarchés ou dos Continentes, menina. Fui logo de manhã buscá-la a Aveiro. Já foram 6 caixas! - O.K.. Vamos lá provar isso. Não é pequena para a época? - Não, menina. A sardinha quer-se pequenina. Só se deve virar duas vezes. É como as mulheres: não gosta de ser muito rebolada! - Ah. Não sabia. Vou tomar nota disso. [sorriso] - Aqui dos lados, é só gente a sair descontente: «As minhas estavam moídas…», «Mal-empregado dinheiro!». Aqui, veja! Rijinhas, salgadinhas com sal do mar, grelhas limpinhas… Não falha nada! Já cá veio o Fernando Mendes várias vezes, no outro dia esteve cá o Passos Coelhos… Aqueles senhores que ali estão sentados, estão alojados na Casa dos Melos e há quatro dias que aqui vêm. Dizem que não gostam de correr riscos. Aqui não apanham barretes! - Muito bem! - Têm que provar o nosso polvo à lagareiro e o bife na telha. Cinco estrelas! - Combinado!

Push-up

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- Ó filha, puseste silicone? - Não mãe, que ideia… - Mas estás… diferente… - É do sutiã, mãe. É um “push-up”. - Um quê?! - Um “push-up”, mãe. O Pedro disse-me que tinha de realçar o peito. - O Pedro?! Não me digas que arranjaste namorado e não me disseste nada! - Não, mãe, o Pedro é consultor de imagem; deu-me umas dicas sobre o que devia melhorar e o que devia evitar. Só estou a seguir os conselhos dele. Não gostas? - Não se trata disso, filha. Estás diferente, é só. Chama um bocado à atenção… - E? - “E” nada. Tu é que sabes. Ainda bem que não é silicone. Essas coisas fazem mal… - Eu gosto, mãe. Sinto-me “nova”. A minha auto-estima disparou. Tudo me fica bem. E estas novas cores?! Não ficam fantásticas no meu tom de pele? - Sim, filha, ficam. Estás linda.

Oitava e última consulta

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«Love can cause addiction, Run before it’s too late» Anónimo - Conseguiste responder à pergunta? - Sim. - Estás livre? - Estou. [sorri] - Qual foi o “exercício” afinal? - Exercício longo… Tomei consciência do desequilíbrio, dos excessos, do meu extremo oposto. - Extremo oposto? - Sim, o meu sentimento extremo levou-me a um grau de exigência que ele jamais poderia ou conseguiria acompanhar. Dos extremos vem o mal. Decidi libertá-lo. - Mas não foi ele que, mais uma vez, não te deu resposta? - Não. Simplesmente não respondeu a uma mensagem, logo deu-me a resposta que eu tanto procurava. Na verdade, também ele me libertou… - Como te sentes? - Pela primeira vez em muito tempo, em paz. Tranquila, renovada. Voltei ao meu meio-termo. (…) - É uma despedida? - Sim, é uma despedida.

Livro manchado

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Estava hoje embrenhada nas minhas leituras de doutoramento, quando verti a minha infusão sobre o livro da leitura em curso, por sinal tomado de empréstimo. Lembrei-me logo das “técnicas” de envelhecimento de papel utilizando café ou chá que a minha amiga Rita me ensinou. Dei por mim a pensar que um livro manchado tem outro valor, outra significação. Há muito que não dou as minhas voltinhas nas feiras de velharias e alfarrabistas por onde vou passando (aliás, nos últimos tempos, deixei de fazer – estupidamente - muita coisa de que gostava…). Lembro-me de ter comprado, há largos anos, numa dessas feiras, um dicionário técnico multilingue dos anos 30, amarelecido pelo tempo, com cheiro a mofo e tudo! Ainda hoje o guardo religiosamente e, cada vez que pego nele, tento imaginar as mãos que nele pegaram antes de mim, as consultas que nele foram feitas, os tradutores ou outros curiosos que com ele conviveram, os motivos que os terão levado a desfazer-se dele… Resumindo e concluindo: gosto de

À Derrida

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J’ai sombré pendant des mois, Et il suffisait d’écouter Derrida. On m’avait demandé pourquoi… Je ne savais pas, Mais il suffisait de revisiter Derrida. À l’aveugle, je n’ai rien mis en cause, Il n’y avait qu’une intuition, La réponse était toujours là, Il suffisait de lire Derrida. Montage, démontage, Pièce par pièce, Je vois plus clair comme ça. Bon Dieu, il suffisait de relire Derrida !

Cartas de Amor

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Acabo de ler as Cartas de Amor de Pablo Neruda. Uma recolha da D. Quixote das cartas que o autor escreveu entre 1950 e 1973 a Matilde Urritia. A organização está interessante: vai do arrebatamento da paixão inicial ao amor amadurecido dos últimos anos, já saído da clandestinidade. Contudo, não sei se por ter partido de expectativas demasiado elevadas, se por ter embirrado com a tradução, esperava mais… Ainda assim, teve uma certa piada voltar a este “registo”. Afinal, ainda alguém escreve cartas de amor? Daquelas escritas em taquicardia, em papel (= fibras de celulose) e com caneta (BIC, Monblanc, pouco importa desde que seja caneta)? Cartas movidas pelo ímpeto incontrolável do agora ou nunca, escritas de um trago, na urgência da remissão… Não creio. Ficará uma falha aberta na educação emocional das gerações “SCE” (= SMS/Chat/E-mail)… Será que o sinal da SMS tem a mesma força do bilhetinho colocado na mochila? Que os pseudodiálogos povoados de abreviaturas e caracteres únicos têm o mes

Sociedades Fracassadas

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Fábulas. Sempre gostei de fábulas. Todas. As de Aquilino, as de La Fontaine, as de Bourgeade (que põe homens a comer armários)… A metáfora é o meu recurso expressivo de eleição. Acabo de ler o último livro do filósofo espanhol José Antonio Marina, Las Culturas Fracasadas – El talento y la estupidez de las sociedades. O que acontece a um formigueiro – uma “sociedade perfeita” – quando, de repente, as formigas se tornam inteligentes, reflexivas e autónomas? Querem adivinhar? Livro delicioso. As reflexões do autor sobre o poder “dissolvente” da inteligência são provocatórias, mas fundamentadas. De facto, este conceito bergsoniano transporta-nos para a evidente “dissolução” que gravita na N/ sociedade; “dissolução” aqui entendida como sinónimo de “falta de consistência” ou “falta de coesão”. Uma sociedade onde todos opinam em modo “dissolvente”, claro está. Se, para Marina, a inteligência é a capacidade de dirigir bem o comportamento, captando, elaborando e produzindo informação, podemos c

Os Despojos do Dia

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Ficou a ausência, o vazio, O nó na garganta, o travo na boca. Se subtrair os sorrisos, as palavras amigas, Os sucessos e o sentimento de dever cumprido. E apesar destes, São esses os despojos do meu dia. Não elimináveis no lixo doméstico, Não apagáveis da reciclagem no meu desktop. Marcados a ferro e fogo, Irreversíveis como doença quase terminal, Apesar dos avanços científicos, Da vontade na cura, A predisposição – genética ou literária – está lá. Recolho nestas linhas os despojos do meu dia.

Consultas II

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- O que é que escreves nesse caderno? - Tiro notas. - Notas… Aquilo que eu digo ou as tuas impressões sobre o que vou dizendo? - As duas coisas. - Digamos que é a minha “biografia não autorizada”… Quando publicares avisa para eu me pôr a milhas! [risos] - Vejo que não perdeste o sentido de humor. - Sabes, o meu sentido de humor é proporcional ao meu estado depressivo… - Queres explicar? - Não sei o termo certo. Ando lamechas. - “Lamechas” como? - Choro por tudo e por nada. Ponho-me a ouvir música fatela; aqueles ersatz de Whitney Houston que tanto critico. Ponho-me a remexer nas coisas que ele me deu. Até nesse ponto estou em desvantagem… - Como assim? - Eu só lhe oferecia “consumíveis”, coisas que não deixassem rastos… Inconscientemente, acho que estava a protegê-lo. Ele, oferecia-me objectos, coisas que perduram e das quais não me consigo livrar. Partilhei os meus sítios com ele. Só agora me apercebo que o contrário não aconteceu o que faz de mim uma condenada às memórias… - Tens dor

Consultas I

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- Porque dizes que sabias que voltarias cá? - Soube-o cedo. Desde o primeiro “Game Over”. Vi logo onde isto me levaria… Às vezes, lembrava-me desse teu quadro. - Qual deles? - Esse aí, atrás de ti. O das pontezinhas. É Hamburgo, não é? - É… Tentaste afastar-te? - Várias vezes. Mas voltava sempre ao contacto. - Tu? - Sim, sempre eu. Era como andar nos A.A. e voltar sempre a cair na tentação do próximo copo. - Voltaste a vê-lo? - Vi-o há dias. - Falaram? - Small talk. Só faltou falar no tempo que fazia. Nem me perguntou pelo David. - E então? - E então, pensei que estava preparada, mas não estava. Sou uma parva. - O que é que te preocupa mais neste momento? - É a noite. Vou para a cama e fico a lutar com a caixinha dos comprimidos escondida com o rabo de fora atrás do retrato do David: tomo não tomo. Ultimamente, só tenho tomado à quarta noite consecutiva… Depois, é o contar das horas, os filmes a passar na minha cabeça, os exercícios premonitórios. Preocupa-me também o facto de este déf

Q.E.

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Emocional Até ao tutano, com direito a tatuagem, Olhar espelhado e tremores vocálicos. No dever e na paixão. Quando ouço, leio, falo, canto, grito, esbracejo, tranquilizo, sossego, acalmo. Emoção É a minha língua materna, A minha língua esperântica; Recuso-me a traduzi-la. Sob pena de não haver intérpretes disponíveis, Sob pena de as etiquetas não serem as correctas. So what? Temperamental, intempestiva, exagerada? Sou emocional. Sem fitas, nem limites De choro e riso fáceis Confesso-me. Com tudo o que comporta de bom e de mau. Vivo-me. Partilho-me. Emociono-me na perspectiva de outros emocionais, De pares, sósias, siameses Que não necessitam de explicações, que não se ofuscam. Para quem meia-emoção basta.

Passwords

Alterei todas as minhas passwords para não ter de me lembrar da Foz do Paixão das viagens ao Deserto da Filosofia do Caramulo e dos Anos Pares. Como se não as escrever apagasse desconstruísse, retrocedesse. As actuais, são mais terrenas, menos seguras… Talvez me façam adormecer e regressar.