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Foz de Memórias ou Foge de Memórias

Não sei se já está provado cientificamente, mas estou convencida que as mulheres têm mais e melhor memória que os homens. Duvido que te lembres, com tanto pormenor, dos nossos primeiros anos no Porto. Das águas-furtadas no Bonfim, a que chamavas Casa de Bonecas. Lembras-te? Dos longos passeios junto ao rio, aos domingos. Ficavas longos minutos, que a mim pareciam horas, a olhar para os pescadores. Dizias que, de tanto olhar, acabarias por descobrir de onde lhes vinha a paciência. Lembras-te? Dos fins de mês apertados, a contar os tostões que nunca chegavam a Contos. Eu, a servir de guia nas caves, antes da era das maquinetas falantes. Tu, a guardar livros e a contar os Contos de outros. Lembras-te? Da primeira noite de S. João, em que atravessámos a ponte D. Luís às centenas, e pensávamos que a ponte cairia. Lembras-te? Depois, com os dinheiros da CEE, mudámo-nos para a Cidade Maior e esquecemos a Cidade da Foz. Pergunto-me se os nossos filhos sabem que tenho tã

Mila

Hoje, tive companhia até ao Entroncamento. Tem um nome impronunciável, com vários ípsilones e muitas sílabas, mas toda a gente a trata por Mila. Veio de São Tomé há 5 anos. É estudante de Enfermagem e trabalha à noite num Call Center. Já trabalhou nas limpezas e na restauração. Tem de fazer diretas para entregar trabalhos na Escola. Nos estágios hospitalares que vai fazendo, os utentes de que mais gosta são os velhotes: gosta de os ouvir e de negociar com eles as higienes e as refeições. Aos sábados à tarde vai dançar Kizomba ao Barreiro. Enjoa no cacilheiro, mas, quando lá chega, esquece-se tudo. Diz que o português “não vive” e é “bué stressado”. Em uma hora e meia não lhe ouvi uma queixa. Resgates e troikas não lhe devem dizer muito. Sempre sorridente. Linda. Não sei porquê, mas não consigo imaginar a Mila num serviço de geriatria dos Alpes Suíços, a dançar Kizomba na neve.

Terceiro encontro com o escritor

- Acredita que um escritor medíocre se pode transformar num bom escritor? - E o que é um bom escritor? - Um escritor que reúne consensos? - Consensos de quem? - Mas pode haver evolução na escrita… - Sim, mas será sempre paradoxal. A nossa escrita evolui deixando a descoberto os erros da escrita do passado, os erros de outros autores. Chega a ser perturbador. “Como pude escrever daquela maneira?!”. - É uma evolução que acompanha a evolução intelectual do próprio autor, suponho… - Não. Isso é ilusório. Evolui-se mais rapidamente na escrita. A escrita é, muitas vezes, a projeção codificada do que gostaríamos de ser. Somos melhores na escrita do que na vida real.

Elevador

Encontrei-te hoje no elevador de um centro comercial. Já não te via há 7 anos e confesso-te que, ao longo desse tempo, aprendi a não pensar em ti. Foi estranho. Embora distantes, sem contacto, sempre estivemos, de alguma forma, ligadas. Ligadas por um sonho. Ligadas pela música, por duetos sincronizados, por um sol que, afinal, caiu. Hoje, envergonho-me de algumas palavras que te possa ter dito (disse?). E que, se não disse, pensei, o que, no fundo, vai dar ao mesmo. Devíamos nascer todos com o dom do registo certo, da serenidade na ponta da língua... Chamam-lhe "maturidade"... Não mudaste muito. Achei-te mais magra e envelhecida. Um pouco triste, talvez. Não te entusiasmaste muito com o nosso encontro, ao contrário de mim. Eu e os meus entusiasmos precoces... Não gostei da forma como mandaste reter a porta do elevador. Podias ter descido mais um piso para conversarmos mais um pouco. Na verdade, nem conversámos. Circunstanciámos. É incríve

Segundo encontro com o escritor

- É possível amar alguém que não existe?   - Amamos sempre alguém que não existe. - Não é possível amar um ser de carne e osso, com todos os seus defeitos e idiossincrasias? - Não. Isso não é amar. É tolerar, aceitar, viver com. - Mas posso encontrar alguém que preencha os meus critérios, que tenha objetivos e gostos comuns… - Ter critérios já é um mau começo. Amamos quando somos livres de critérios, quando não pensamos em objetivos, quando deixamos de ter gostos… - Resta-nos amar o impossível, é isso? Projetar a nossa perfeição num ser imaginário ou em alguém que esteja à mão de semear e com quem vamos viver o efémero dos primeiros tempos e desamar logo a seguir para sermos estupidamente infelizes? - Não foi isso que eu disse. - Disse que amávamos sempre alguém que não existe. - Sim, mas a SUA perfeição existe. Se a pensou, se a imaginou, é porque existe. - E quando sei que a encontrei? - Quando finalmente se sente livre. Livre do relógio, do olhar

Sexto Sentido

Amor, Tinham acabado de cortar a relva. Adoro o cheiro de relva acabada de cortar.   Sentei-me num banquinho, junto ao riacho de cuja foto te enviei. Adoro o barulho da água a fluir.   À minha frente, uma fila de juncos aquáticos a dançar com a brisa, suaves...   Ainda tenho comigo o gosto do teu beijo que nenhum outro paladar apaga...   Na ponta dos dedos, a suavidade da tua pele descoberta e a memória futura da pele do teu peito firme à minha espera. És o meu Sexto Sentido. Omnipresente.  

Caminho sem volta

Neste caminho, o tempo e o espaço deixaram de ter unidade de medida, de ter importância… O meu lar é o que nos une, independentemente da etiqueta que as convenções lhe queiram colocar. Contigo, tomei posse do meu Ser e do meu Agora. Contigo, vacilo entre o silêncio profundo e o Verbo. A Nossa linguagem é imaterial. Nada temos para provar um ao outro. O tempo que existiu e o destino disso se encarregaram. Entre emoção e razão, não há, entre nós, justificação, apenas porque Somos, na certeza de querermos fazer juntos este caminho sem volta. Tão contraditória aos olhos do mundo esta Liberdade! Tão avassaladora! Tão presente! Nós que, como o Mestre, escrevemos para esvaziar a mente e encher o coração! Tudo passou a ser Mais! Partilha, é a palavra de ordem, a palavra fundadora. Os livros, os sentimentos, os projetos, os entusiasmos! Este Nosso caminho não tem volta.  

Regresso

As amarras que te prendiam ao cais cederam. A tua deriva foi serena e plena de ensinamentos. Desviaste-te dos obstáculos sem queixume, praticaste a bondade, combateste o ego com o sorriso. Renasceste. Vieste à superfície capturar a tua essência. E eis que o sistema da tua vida regressa ao ponto de restauro que lhe tinhas indicado. Eis que, como num jogo de Tetris, os blocos se encaixam e a tua vida ganha cores! Cores que julgavas perdidas, desmaiadas, impossíveis… O silêncio que cultivaste com resignação enche-se de música, de hinos ao Amor e à Partilha, de vozes magnificentes! Regressas ao cais com a certeza de que a viagem foi necessária, mas que, Agora, outro caminho te espera, sem amarras.  

Sobre o livro que abre a porta ao novo mundo

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  Depois de ler Robin Sharma e Paulo Coelho, fiquei à espera de um autor que me conseguisse entusiasmar ainda mais. Eckhart Tolle é o seu nome. De uma forma despretensiosa e clara, socorrendo-se de parábolas, passagens da bíblia ou, simplesmente, de experiências de vida, Tolle aborda uma diversidade de conceitos essenciais a todo(a)s aquele(a)s que procuram viver uma vida melhor. Cada leitor fará a sua receção própria do livro e elegerá os temas que mais lhe pesarem. Pessoalmente, realço: 1.        A necessidade/a possibilidade de mudança interior antes de encetar qualquer mudança exterior: a ordem não pode ser subvertida! 2.        O conceito de não-reatividade entendido como uma força e não como uma fraqueza, e a necessidade de vencer mágoas e ressentimentos. 3.        O conceito integral de ego que equipara auto-estima a humildade. 4.        O conceito de corpo de dor, o que o origina e de que forma a sua tomada de consciência e aceitação

Pedagogia do Esquecimento – Conclusão

[O preâmbulo, a primeira parte e a segunda parte deste conto foram publicados, respetivamente a 10 de fevereiro, 3 de março e 20 de abril de 2013]    «Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais.» Clarice Lispector in A Paixão segundo GH   Tinha de ser hoje. Sabes – ou talvez já nem te lembres – o quanto eu gostava de assinalar datas, quantificar períodos… Faz hoje um ano. Já tenho resposta. O esquecimento instala-se quando já pouco há para escrever. Quando o Romance de vários Tomos dá lugar a um conto tripartido, parido aos solavancos, mais por respeito ao tempo do que à lembrança. Quando não restam dúvidas, quando tudo encaixa. Quando, finalmente, te compreendo. Disse-te um dia, sob a lua de Neruda, que te avisaria. Esse dia chegou: o meu amor por ti terminou. Como música, deixo-te aquela com que tantas vezes me apunhalaste: o silêncio. Estou agora em paz.  

O Chaves

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Tinha a aparência de um toxicodependente do Casal Ventoso dos anos 80. Cabelo desgrenhado que não via água do cano há mais de quinze dias, calças de ganga e T-shirt desbotadas e puídas, mãos gretadas e odor de suor sobre suor. Falava sozinho, como se conversasse com os mortos que lhe respondiam. Parecia daquelas criaturas surgidas do vácuo, a quem não atribuímos nem história, nem família, nem lar. Recapitulava em voz alta a cor e a ordem dos fios que cravava como se recitasse a tabuada. Não passava recibo e deslocava-se numa carrinha Audi dos mesmos anos 80. O Chaves era o melhor eletricista da Vila.  

Lugar de Estacionamento

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Ocupei o teu lugar de estacionamento. Talvez não seja exatamente aquele, não sei bem… Mas, aquela rua ficou sem um carro, portanto, ocupei o lugar vago. Engraçado… Quando chego ao ponto morto, a rádio deixa de dar, como se tu fosses a antena transmissora daquelas paragens. Às vezes, ficou ali 5 minutos antes de sair e dou por mim a imaginar que o asfalto já deu pela falta dos pneus do teu carro. Ocupei o teu lugar de estacionamento. E também tomei em mim as rédeas do teu destino. Vou dar um sentido à tua partida, juro. Carrego as tuas cicatrizes. Mas não se veem: camuflei-as com as melhores técnicas de maquilhagem. Nesta altura das nossas vidas, a maquilhagem é importante. Ocupei o teu lugar de estacionamento e não tenho o direito de chorar. Como poderia? Recordo-me de olhar o teu corpo já frágil e amputado e de me falares da imensidão do deserto. E de sorrires. Sorrias muito. Recordo-me que, quando aquele perverso-narcísico com quem estiveste casada te

Pedagogia do Esquecimento (II)

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[O preâmbulo e a primeira parte deste conto foram publicados, respetivamente a 10 de fevereiro e a 3 de março] «Fool, I wonder if you know yourself at all You know that it could be so simple.»     A presença dele, física e/ou virtual, impunha-se-me quando já a esperava. Matematicamente irritante. Depois de semanas esquizofrénicas de noites brancas se terem acalmado, depois de ter quase desistido de olhar para o visor do telemóvel a todos os quartos de hora… Nunca saberá o quanto e como o amei: há sentimentos e estados do ser fora do alcance da esfera narcísica de alguns seres outros. No início do segundo ano, comecei a constatar o que era óbvio: dava-me azar. Sempre que ressurgia na minha vida, algo me era retirado. O saldo da dignidade era o que mais sofria. As perdas iam ficando a depurar no consultório da psicóloga incrédula. Naquele dia, como nas sagradas escrituras, acordei a querer adormecer. Sentei-me na borda da cama e fiquei a olhar para a mala a

Primeiro encontro com o escritor

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- Li o seu último livro. Gostei. - Sério? - Sim. Aliás, se soubesse que estaria aqui, tê-lo-ia trazido para mo autografar. - Não seja por isso. Posso ir ao carro buscar um exemplar e… - Não vale a pena. Não seria a mesma coisa… - Porquê? [sorriso] - Aquele foi o livro que eu li. Está rabiscado, sublinhado, comentado… - Comentado?! Gostava de ver isso… - Demasiado íntimo… - Vejo que te apropriaste dele… Bom sinal. - [meio-sorriso] - O que fazes na vida? - Sou professora. - De quê? - Geografia. - Viajas muito? - Bastante. - Na realidade ou metaforicamente? - As duas coisas. - Estou a gostar disto. Vou buscar uma bebida. O que bebes? - Nada. - Com ou sem gelo. - Com. […] - Escreves? - Nada para levar a sério. - Gostava de te ler. - Na realidade ou metaforicamente? - As duas coisas…  

Pedagogia do Esquecimento (I)

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[O preâmbulo deste pequeno conto foi publicado neste espaço a 10 de fevereiro de 2013] «Will you see me in the end or is it just a waste of time trying to be your friend»     A decisão definitiva do esquecimento chega no dia em que se perde a ingenuidade de acreditar numa (im)possível amizade. No dia em que tomamos consciência de que, no dia de Natal, nos apressamos a telefonar para desejar boas festas, com o medo inconsciente de ficarmos toda a ceia à espera do nada. No dia em que descobrimos que, afinal, não somos mais do que mais um apagão na incessante e doentia procura de luz do outro. No dia em que a raiva e a diabolização dão lugar à compreensão, porque só há raiva relativamente ao que não se compreende. No dia em que, finalmente, decidimos falar do que já não temos, porque é mais fácil, porque as lágrimas secaram. No dia em que tivemos a coragem de fazer um percurso diferente, de apagar rastos, de fechar a porta, de deixarmos

A Casa do Sono: quando a tradução nos interpela

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                O que é que nos leva a gostar ou não de um livro? No caso d’A Casa do Sono, diria que foi o diálogo que suscitou entre mim, o autor e o seu tradutor.                 Para começar, levei alguns capítulos a entender o porquê da atribuição do prestigiado prémio francês Médicis a esta obra de Jonathan Coe. Embora original e divertida, a história é tecida sem grandes profundidades literárias ou surpresas. Para resumir, o romance gira em torno de 4 personagens, colegas de universidade, em dois tempos distintos das suas vidas, com um intervalo de cerca de 12 anos. A estória tem a particularidade de alternar, nos capítulos ímpares, os tempos de estudantes e, nos capítulos pares, os acontecimentos que ocorreram 12 anos depois. Os encontros e os desencontros entre personagens ocorrem tendo sempre, como pano de fundo, a temática dos distúrbios do sono e um dos principais cenários, Ashdown, é, simultaneamente, a residência universitária onde todos viveram e, mais tarde, u

Acelerações

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A desorientação em que nos encontrámos, diz-se, é fruto da aceleração técnica, social e económica que se instalou nas nossas vidas. A verdade é que podemos estar convencidos de que estamos a acompanhar o ritmo e a fazer todos os upgrades necessários para não ficar para trás e continuarmos no nevoeiro. A verdade é que não basta descarregarmos e utilizarmos as mais recentes aplicações, não adianta termos contas atualizadas em todas as redes sociais e lermos todos os best-sellers. Na maioria das vezes, esses gestos são mecânicos e impensados. Cada um deles tem de se fazer acompanhar de uma real reflexão. Perdeu-se o hábito de pensar analiticamente sobre as coisas… Podemos ter o último sistema operativo instalado sem saber quais os benefícios que nos trará, nem tão-pouco porque razão o instalamos. Instalamos ponto. Carecemos de objetivos definidos, concretos. Não sabemos ajustar o nosso pensamento, a nossa mente, as nossas atitudes a toda esta ebulição. Enquanto

Pedagogia do Esquecimento - Preâmbulo

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«I wanna be the place you call Home»     O esquecimento é inviável. Só nos esquecemos do que não queremos esquecer. Enquanto houver um alvo para o esquecimento, esse processo é sumariamente impossível. A terapia de substituição passa por ir desviando lentamente o dito alvo. O percurso é longo e os desvios sinuosos. I couldn’t be the place you call home and I have to live with that J aneiro de 2013

A assimetria das perdas

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Mesmo que a perda tenha, segundo as leis da Física, o mesmo peso que o ganho, para o indivíduo a perda é sempre mais pesada. Vive-se e revive-se mais a perda. O ganho, no seu canto, é poucas vezes celebrado ou realçado. Passa logo, efémero. Não percebo porque ainda se perde tempo com balanços e projeções emocionais. O prato pende e penderá sempre para o mesmo lado. É inato. Temos a memória curta. Demasiado curta. Ofensivamente curta. Para que byte foram os bons momentos? «E se perder, vou tentar esquecer-me de vez... conto até três...»