O Peso da Condição
“As relações têm um caráter prioritário
para todos nós,
a nossa suscetibilidade face aos outros
deixa-nos vulneráveis
a todo o tipo de dano e, em casos
extremos, à possibilidade da morte.”
Donna Hicks in Dignidade
Apercebi-me rapidamente que não estavas bem.
Não que as circunstâncias fossem propícias a outro estado de
espírito, mas tinha esperança de te encontrar melhor. Egoísmo meu, seguramente:
precisava que estivesses bem.
Mas, a verdade, é que não estavas. Notei-te feliz por me
veres. Muito feliz, até. Como se eu fosse uma lufada de ar fresco no teu luto.
Foi quando entrámos no carro – o mesmo de tantas aventuras, de tantos
quilómetros sem destino – que percebi. Ainda nem tínhamos saído do parque de
estacionamento e já estavas a justificar a tua falta de desenvoltura: que já
não conduzias há 3 anos por causa das gravidezes de risco, que o Carlos te
levava a todo o lado e que se metia muito com a tua forma de conduzir.
Fomos ao centro histórico, como antigamente, beber um vinho
e petiscar. Aos mesmos dois sítios de sempre. Disseste-me que esta era a
primeira vez que saias com uma amiga desde o nascimento da Laura. Que a
maternidade muda tudo, mas compensa. Assenti. Que gostavas de ter uma família
numerosa. Respondi que eu também, que tinha detestado ser filha única. Que não
estavas a conseguir lidar com a perda do teu segundo filho. Respondi que não
tinha palavras nem equivalente, mas que teria adorado ter tido um segundo
filho, e que não o ter tido seria, certamente, a maior frustração da minha
existência. Falámos de úteros: o teu, incompetente, o meu, embolizado.
Decidimos falar de coisas boas, ou seja, das filhas que
tínhamos, e toda a conversa do serão girou à volta da maternidade. À volta do
que supostamente nos realiza.
No caminho para o hotel, não pude deixar de pensar no quanto
estavas diferente, quase apática, triste. No quanto eras alegre e cheia de
energia. No quanto eras contagiante e firme. E perguntei-me se também eu teria
mudado, mas não obtive resposta. Talvez tu pudesses responder.
No dia seguinte, estavas ainda mais calada. Como se a
conversa do serão anterior tivesse despertado em ti memórias tristes ou a
consciência de um fim. Respondias com monossílabos, com o olhar distante. Não
imaginas o que me custou sentir-te assim.
Permeável como sou, levei toda a viagem de regresso a
estabelecer paralelos, a refletir sobre a nossa condição de mulheres, a tentar
entender onde nos perdemos, a procurar uma luz.
Procuro afastar o pensamento de que jamais serei feliz. De
que jamais poderei desabrochar para uma relação amorosa por causa desta maldita
doença.
E quando penso na doença, penso no que a desperta e concluo
que é a minha condição de mulher. De mulher só, a braços com uma vida demasiado
pesada de responsabilidades, sem porto seguro, sem um ombro verdadeiramente
amigo e despreconceituoso com quem possa partilhar as minhas dúvidas, as minhas
frustrações, as minhas fragilidades.
Lembro-me que estive muito perto de o conseguir, até que, do
outro lado, o peso das frustrações tolheu os sentidos e a suposta clarividência.
Penso nos desafios que ainda me esperam e pergunto-me se
conseguirei dar a luta merecida, se não cairei na apatia em que tu caíste.
Fui embora e não te dei um abraço. Tive medo que não mo
aceitasses. Estavas fria.
A falta que um abraço faz! Se estivesse agora contigo,
dava-te um abraço até que cedesses. Ia fazer-te bem.
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