Correr e Chorar

É possível correr e chorar ao mesmo tempo?
Os meus amigos das maratonas dirão que sim, que - quando se chega aos 20 km - as dores são tantas que já nem se descortina a origem (músculos, articulações, ossos, tanto faz) e lá se soltam umas lágrimas.
Bem, não é desse choro de que falo. Não é o choro das dores, da aflição, da impotência.
Falo do choro da emoção, da beleza sentida, da esperança de que há melhor.
Esta manhã saí para correr cedo, nasciam os primeiros raios de sol. Para não comprometer a logística familiar, decidi-me por um percurso próximo de casa; as paisagens não são extraordinárias, pois trata-se de uma zona industrial, mas de madrugada tudo é lindo, sobretudo o silêncio, a imobilidade das coisas e a inexistência de almas físicas.
Sorteei o podcast de companhia. Calhou-me “O Amor É” com o Júlio Machado Vaz e a Inês Meneses; há muito que os ouço e que a sua receita de clarividência, cumplicidade e tranquilidade me deleita.
A conversa era dedicada a uma entrevista que Pilar Del Rio deu ao Expresso no final de abril último. “José foi uma maldição”, diz ela. Maldição…
Nunca tinha pensado nesta palavra como se de algo positivo ou bom se tratasse. O peso dos prefixos e das convenções…
Pois bem, a partir de hoje, esta palavra passou a ter para mim um significado novo. Maldição enquanto sinónimo de amor e dedicação incondicionais, de uma passagem para segundo plano, de um abdicar em prol de um nós. O amor de Pilar e José foi uma maldição. O amor de Pilar e José foi singular e magnânimo.
A maldição que afastou Pilar do seu único filho foi a mesma que lho devolveu quando mais precisou. A maldição. A singularidade. O reconhecimento de que amar desta forma não é para todos. E o nó na garganta que se forma, o aporte em oxigénio que começa a ficar escasso e chora-se. 
Chora-se a maldição dos outros.


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