Conto de Natal dos Tempos Modernos, Sem Avareza e Rituais Americanos



Ele.

Gostava da sétima arte e colecionava os DVD dos seus filmes e séries de culto. Nunca pirateados. Só dos que traziam o selo da IGAC. Opunha-se a cópias e imitações, e ordenava as caixas em várias estantes, por géneros e pela ordem das suas preferências.

Sabia de cor diálogos e tinha vívidos na memória cenários, cenas e bandas sonoras. Reificava realizadores, atores e atrizes.

Tratamento equivalente era aplicado à sua música. Esta escrupulosamente categorizada em ficheiros do seu PC, no qual ninguém podia entrar, não se fosse apagar algo acidentalmente. Cada escolha tinha uma história motivada, um sentimento associado, uma sensação refletida. Os seus sonhos de vida eram de concertos intimistas, os seus heróis eram cantores desconhecidos do grande público, sobre os quais tudo sabia.

Era organizado, meticuloso e apreciava o rigor das coisas simples.

Ela.

Era completamente obcecada por livros. Já não tinha lugar para eles, mas continuava a adquiri-los. Nem que tivesse de se desfazer de roupas, colchas de croché e lençóis de seda.

Tanto era capaz de ler um livro numa tarde, como de ler e reler outro até à exaustão e deixá-lo de pousio durante semanas, indagando. Os de ficção, motivavam-lhe viagens imaginárias que tinham a virtude de a resgatar da sua vida morna. Os de não ficção, sublinhava-os, anotava-os, resumia-os. Davam-lhe alimento para as suas formações e longas conversas… ou monólogos.

Adorava cozinhar. Dissecar sabores, juntar ingredientes dissociáveis, decorar mesas, ritualizar refeições, passar horas à mesa na companhia de um bom vinho. Mas detestava pseudo-chefes, pseudo-empratamentos e etiquetas exageradas.

Era pragmática, sonhadora e apreciava o rigor das coisas simples.

Eles.

Encontraram-se a algumas semanas de um Natal, já a cidade se enfeitava de luzes.

Equipa improvável, nunca mais se largaram e temas de conversa não faltaram nunca nas mesas fartas, no sofá frente à lareira, enroscados, a (re)ver um filme que motivava analogias com livros e músicas.

Ela passou a ter quem lhe arrumava os livros, lhe provava os temperos, lhe escolhia o vinho, lhe carregava as compras.

Ele passou a ter uma espetadora atenta ao seu lado, companhia para os concertos intimistas, os jantares infindáveis e as provas de vinho.

Passaram a gostar do Natal, porque o reconstruíram em conjunto, no rigor das coisas simples.
 

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