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A mostrar mensagens de 2018

Rua das Flores

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Um dia, fui parar acidentalmente àquela rua. Se é que ainda se pode dizer que as coisas nos acontecem acidentalmente… Foi há mais de duas décadas. Calcorreava eu as ruas do Porto, na inconsciente esperança do reconhecimento geográfico pela sola dos sapatos. Percorri a rua até à Ribeira, tão depressa quanto me foi possível; além da degradação urbanística e da escuridão, depressa percebi que aquela artéria era local de intenso tráfico de drogas. Mais de 20 anos volvidos, o meu trabalho levou-me novamente à rua, a um serviço municipal que, entretanto, lá se instalou. Completamente reabilitada e, agora, exclusivamente pedonal, a rua que - em tempos de D. Manuel I - fora de mercadores e ourives, está irreconhecível e demorei algum tempo a estabelecer a ligação. Artistas de rua, saboneterias, chocolatarias, hotéis, restaurantes e cafetarias de charme (este último qualificativo aplicando-se a todos os locais enumerados). Só as lojinhas de souvenirs em cortiça e com as camis

Atenção

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Querem-na porque lhes falta a energia do Amor. Do amor que não dão e do amor que não recebem. E a atenção que solicitam e que, eventualmente, recebem, dá-lhes a ilusão da importância. Uma importância que não têm, afinal, porque ninguém é verdadeiramente importante sem amor. Viseu, 18 de novembro, o dia em que me foi ensinada a diferença entre ter atenção e ser amada.

10 anos de Vozes Femininas!

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Há dias, este meu blogue fez 10 anos. Apetece-me hoje refletir sobre o seu percurso, sobre o que me trouxe, sobre o que poderá vir a ser. Há 10 anos, era quase um ato de coragem ter (e manter) um blogue; existiam pré-requisitos tácitos (escrever bem era um deles). Há 10 anos as redes sociais davam ainda os seus primeiros passos e ainda ninguém era adicto na arte de expor uma vida perfeita por frases feitas e fotografias de instantes. Escrevia-se. E chegava-se ao fim de semana com aquela vontade quase pueril de “ir visitar aqueles blogues giros” que nos diziam alguma coisa. Afirmo-o: foi um ato de coragem criar o Vozes Femininas. Não me sentia à altura do tal pré-requisito, à altura do que lia nos tais outros “blogues giros”. Fui encorajada por duas amigas (que achavam que eu preenchia o tal pré-requisito) e pelas aulas de escrita criativa que desembocaram no meu primeiro conto publicado em coletânea, o Retratos a Sépia. Mas, devo dizê-lo, foi um percurso tateante, insegu

Diálogo com o irmão que não tive (III)

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“As perguntas deixam-nos mais perto do sentido.” José Tolentino Mendonça in O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas - Há outras formas de ser feliz. Não tens de provar nada a ninguém e ele já cá não está para as cobranças. Além disso, achas que ele foi feliz? - Sei o que pretendes com todas essas perguntas: chamar-me à razão, mostrar-me outra direção… No fundo, dizer-me – à tua maneira – que tenho outro caminho, que sou melhor do que ele. [longo silêncio] - Mas tu não existes: és o irmão que gostava de ter tido, mas não tive, o amigo que criei desde pequena para encher a minha solidão de conversas fictícias quando os livros não chegavam, a amiga das confidências quando todas as outras, as reais, partiram para construir a família que nunca tive, o amante terno que ouve sem fundo e que oferece o peito no qual pouso a cabeça na almofada, ou, como se diz agora, o guia espiritual… - Enganas-te. Existo. Sou a pergunta. FIM (de uma história que nunca terá fim)

Diálogo com o irmão que não tive (II)

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« Tout l'or des hommes ne vaut plus rien, si tu es loin de moi  » - Crescemos com medo dele. As deferências que lhe eram dispensadas resultavam do seu caráter rígido e inflexível. Nem sempre advinham do reconhecimento ou do respeito. És muito diferente. - Hoje penso que lhe quis mostrar que era possível chegar lá por outro caminho, dando espaço aos outros. Mas não fui bem sucedida. - Não foste? - Vivi rodeada de homens dominantes, que subjugavam a seu bel-prazer. Não deveriam eles ser as minhas influências? - Ou, pelo contrário, aquilo de que foges. Repito: és muito diferente. - Fui à arca da herança buscar o que me convinha? - Porque não? Não é a isso que chamam de livre arbítrio? - Perspetiva animadora…

Diálogo com o irmão que não tive (I)

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- Sempre disseste que não querias ser como ele. - E sou? - Não exatamente. Mas tens dele. - O quê? - A força, a perseverança, o espírito de líder… - E isso é mau? - Não. Mas também tens a inflexibilidade, a intempestividade, o lado depressivo… - Pois… - Pois… Mas és diferente. Não existem duas pessoas iguais. A tua história é diferente. Tiveste acesso a outras portas, leste, ouviste, ensinaste. És mais afável, mais flexível, mais tímida… - Curioso… Passei a vida a fugir do que ele era e hoje gostava de ter a vida que ele teve… - A parte final da vida dele, queres tu dizer. - A que chegou pelo percurso que fez, por um passado que questionei muitas vezes. - Questionaste o feitio, a personalidade difícil, a severidade. - Na verdade, passei a vida a querer imitá-lo… - Imitar sem querer ser? - Imitar os resultados sem utilizar os mesmos meios… Daí o fracasso… - Achas que fracassaste? Falas como se a tua vida estivesse na reta final. - Em toda a linha. El

Carta à filha quase de saída

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12 de junho de 2018 Minha querida filha, Sou eu que faço anos, mas és tu que estás de parabéns! O último ano tem sido de grandes desafios e tu superaste-os brilhantemente! Orgulho-me muito de ti: da tua humanidade e generosidade (para com amigos e animais), da tua serenidade face à adversidade, do teu sentido ético, a tua dedicação a causas (eco-escolas) e projetos (teatro), da tua resiliência, do teu sentido de humor. Por todos estes motivos (e mais uma longa lista deles), tens sido uma real inspiração para mim. Não só porque sinto que tenho a obrigação de me manter firme, por ti e para ti, como também porque tens sido para mim um exemplo, uma referência. Um exemplo de coragem, de amor e amizade. Temos todos a obrigação de sermos felizes, e a responsabilidade dessa caminhada é exclusivamente nossa. Posso ter aprendido isso nos muitos livros que leio e que me dão momentaneamente a ilusão de um mundo melhor, mas é ao observar-te diariamente que consolido essa co

Sobre a responsabilidade de sermos felizes

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Não é a primeira vez que escrevo sobre um livro do Luís Portela. Com este seu último Da Ciência ao Amor, confirmo que, para mim, Portela é um dos melhores autores portugueses sobre desenvolvimento pessoal (não sei se o autor gostaria desta catalogação…). Há conceitos muito poderosos neste livro, conceitos que nos levam à reflexão da responsabilidade que temos sobre a nossa felicidade. O primeiro (e não tenho a pretensão de elencar prioridades) é a necessidade de assegurarmos a nossa higiene mental. A quase-obrigatoriedade de pararmos para fazermos balanços de vida, para dedicarmos alguns minutos do nosso dia à introspeção, para nos autoconhecermos. Uma ideia que se repete ao longo desta reflexão é a da força do pensamento; uma força que acaba inevitavelmente por formatar o que nos acontece a seguir. Contudo, o autor insiste de diversas formas sobre o livre-arbítrio que igualmente temos de escolher os pensamentos que queremos, de selecionar os construtivos e rejeitar os des

Reverdecer

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Caixas de variados doces em cima da mesa da sala, aquele cheiro a calda de açúcar… A azáfama familiar, o estrear de roupa nova, as limpezas profundas. Nunca esquecerei as Páscoas no Minho, em casa dos meus avós maternos. A visita pascal era o momento alto. Nada podia falhar: o tapete de flores à porta de casa, o vinho do Porto e o pão-de-ló, o envelope da côngrua. Aquelas segundas tinham uma magia quase infantil. A prova-lo, o facto de que nunca mais me esqueci delas ou do cheiro a calda de açúcar. Uma geração se extinguiu, uma casa foi desmantelada, outras famílias se constituíram e as Páscoas mudaram. Hoje, é em casa dos meus pais. Felizmente, ainda temos direito à visita pascal e ainda fazemos o tapete de flores à porta de casa. Ouve-se a mensagem, beija-se a cruz, dão-se as amêndoas aos miúdos da comitiva, entrega-se o envelope e já está. Se pensarmos no sentido da Páscoa, pensamos em ressurreição, em renovação, em novas oportunidades, em recomeços. Se Ele ressuscito

Ana, a Doadora

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De uma forma ou de outra, os livros – ficcionais ou não – levam-nos a viajar e a refletir sobre um certo número de temáticas. Contudo, são raros os que têm o mérito de nos pôr a pensar criticamente sobre nós próprios. Não foi difícil encontrar o meu perfil de doadora, logo nas primeiras páginas. Antes de fazer o teste online que Adam Grant sugere, já tinha uma noção clara do peso que o meu lado “giver” tem sobre o tomador e o compensador. Desde que me identifique com os seus valores, a pertença a um grupo sempre foi de extrema importância para mim: contribuo com o meu trabalho, o meu tempo, coordeno, mentorizo e nunca frustro as expetativas dos meus pares. Depois de elencar os benefícios de se ser doador, o autor chama duramente a atenção para os perigos: exaustão, desilusão, a frustração de nunca chegar ao topo… Mais uma vez, encontrei-me… O desafio é então o de encontrar o sempiterno equilíbrio. Ser-se doador, sim, ma non troppo . Há que abrandar o ritmo, e jamais –

Daqui a nada… Gostava de escrever assim

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Sobre o primeiro romance de Rodrigo Guedes de Carvalho, apetece-me derrubar ideias pré-concebidas. Por exemplo, a ideia de que só conseguimos escrever sobre o que vivenciamos, sobre o que existe no nosso mundo. Como é que se escreve desta maneira, aos 20 anos, sobre a desilusão, a solidão, o silêncio? Ou sobre os despojos de uma guerra na qual não se combateu? Diz o próprio que faz como no cinema: põe-se na pele da personagem, velha ou nova, fútil ou profunda, e “interpreta” um papel. Pode ser. Não me posso esquecer de experimentar. Esta mestria da escrita aos 20 anos é desarmante e interpela as nossas capacidades. E eu, que até conheço as últimas obras do autor, encontro nesta mais genuinidade, menos arranjos e composições. Agrada-me. Gosto da técnica de pôr cada uma das personagens a falar na primeira pessoa, alternando-as por capítulos. Contudo, questiono apenas o facto (demasiado gritante) de as 3 personagens serem igualmente geniais e expressarem o que lhes vai n

O Véu e os Cabelos

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Eras brilhante! Boa aluna, tranquila, culta, falavas pouco, mas sem hesitações; parecias não ter dúvidas sobre coisa nenhuma. Todas nós te envejávamos secretamente. Parecias não ter (não tinhas) aquelas questões existenciais que nos tolhiam os intervalos das aulas e os serões: se as nossas paixões avassaladoras eram correspondidas, como íamos mandar a próxima mensagem subliminar ao alvo das nossas insónias, que roupa iríamos vestir no sarau da escola, como íamos convencer os nossos pais a deixar-nos sair no próximo sábado à noite, se devíamos optar por unhas de gel ou acrílicas… Sabíamos-te de uma cultura e credo diferentes, mas não entendíamos (nem queríamos entender) os meandros da diferença. Aquele véu que nunca tiravas parecia envolver-te numa aura de intocabilidade. Nas vésperas do Bataclan querias ir para medicina. Tinhas tudo o que era preciso. No rescaldo do Bataclan, fizeste um técnico-profissional de cabeleireira. O teu véu denunciar-te-ia. Eu e todas aq

São loucos os escritores

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Termino este livro um dia depois do Dia Internacional da Memória do Holocausto. Este período da história sempre me interpelou e me deixou marcas: do Diário de Anne Frank, passando pel’A Lista de Schindler, e culminando na minha viagem à Polónia em 2009 e consequente visita ao campo de concentração de Auschwitz. Li e vi (nomeadamente, aquando de uma visita recente à Casa Anne Frank) muitos testemunhos, e falei com pessoas que privaram com protagonistas (Aristides de Sousa Mendes, por exemplo). Testemunhos de quem viveu ou esteve próximo do epicentro. Os livros de história relatam, irão continuar a relatar, para que nunca se esqueça… E há a ficção. Há o pegar num trecho dessa história, uma circunstância precisa (um massacre numa aldeia, vizinhos contra vizinhos), e trazê-lo à boca de cena, dar-lhe uma vida novamente, povoá-lo de personagens decifradas, e aí colocar também uma história de amor. E o ficcionista-autor é português, e pega em toda esta matéria, apropriando-s