Testemunhos traídos
Tenho estado a reler as mensagens que trocámos entre 2009 e
2012.
É desconcertante a sintonia, a irmandade, o consenso. Éramos
uma espécie de “almas gémeas” (embora saibas muito bem o que penso destas expressões
feitas, não posso deixar de admitir aqui a correspondência).
Acho que, de alguma forma, nos completávamos. Eu apreciava a
tua polivalência, a tua organização e criatividade. Penso que tu apreciavas em
mim a minha serenidade e o meu pragmatismo. Juntas fizemos coisas giríssimas!
Éramos uma equipa.
Apareceste na minha vida numa altura conturbada, de total
questionamento, de solidão. Vieste dar cor aos meus momentos cinzentos,
acrescentar sentido à minha existência. Houve uma época em que nenhuma das duas
dava um passo sem ouvir a outra.
Contudo, como tantas outras amizades, esta também se
desvaneceu sem que eu consiga encontrar uma motivação para tal.
Pode parecer uma história igual a tantas outras. Quantas
amizades veem o seu ciclo terminado, sem que haja uma razão plausível, uma
rutura, uma falta de concordância?
O problema desta história é que deixou rasto… Estas
mensagens trocadas, escritas sob o impulso das sensações causadas pelas
leituras recíprocas. O entusiasmo da identificação, o tirar as palavras da
boca, o completar das frases…
Com a distância que só o tempo concede, releio estes
testemunhos e sinto-me traída. E não, não é por ti. Mas também não sei por quem
ou por quê.
O problema é o registo escrito. Fica, perdura, subsiste…
Podemos lá voltar e viajar com ele, mesmo que a memória já não corresponda
integralmente.
Kundera tinha horror às interpretações que fizeram dos seus
escritos. Depois da adaptação ao cinema d’A Insustentável Leveza do Ser, nunca
mais autorizou que um livro seu passasse para o ecrã. E embirrava solenemente
com as traduções que faziam das suas obras (este é, aliás, o tema central do
seu ensaio “Testamentos Traídos”).
De alguma forma, é um pouco assim que eu me sinto. Irritada
com o destino que estes escritos tiveram, com o final que foi reservado a estas
mensagens trocadas, com o valor efémero e circunstancial das palavras.
Frustrada por concluir que estes testemunhos não são resgatáveis, que se
circunscreveram a um período, a uma vivência.
Como eu precisava de ti agora! Da tua sageza e experiência.
Do teu olhar doce, do teu colo…
Acho que te vou ligar… Pelo menos, não fica o testemunho
indelével.
Ou talvez não. Era na palavra escrita que comungávamos.
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