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A mostrar mensagens de outubro, 2021

A Arquivadora de Sonhos

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(microconto) Sou a Elsa e sou professora-bibliotecária. A escassez de horários de língua portuguesa emprateleirou-me com os livros. Não imaginam o bem que me fizeram... Já tive uma vida dita normal: licenciei-me, arranjei colocação e casei. Tudo isso durou muito pouco tempo. Já nem sei se ainda sou licenciada, dada a distância temporal desse requisito e os inúmeros outros que se lhe vieram juntar e que não cumpri. Sou introvertida, mas gosto de falar com os miúdos. Sou solitária, mas vivo rodeada de personagens e histórias. A minha vida é um sucedâneo de compensações. Não tenho isto, mas tenho aquilo. Não tenho horário completo, mas trabalho na biblioteca, onde mais gosto de estar. Não ganho muito, mas, em contrapartida, não gasto muito dinheiro, pelo que o mesmo me sobra. Não tenho uma família que possa designar de minha, mas tenho sobrinhos e afilhados que adoro e penso ser correspondida. Ao longo dos anos, tornei-me uma espécie de ave-rara, esquisita e seletiva. Comigo mesma. Como q

Lucidez Centenária

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Sobre o último (que, espero, não seja o último) livro de Edgar Morin Nunca conheci ninguém que tivesse chegado aos 100 anos com esta lucidez. Tudo o que se possa dizer sobre este livro é redutor e não lhe faz justiça. Obviamente, enquanto recetora desta obra, fiz-lhe uma leitura muito própria, à dimensão do meu mundo. Limitar-me-ei, portanto, a explorar algumas passagens que me prenderam e que sublinhei. Na verdade, poderia ter sublinhado o livro quase todo... Todo o livro é um convite para aprendermos a lidar/viver com a incerteza. A dado momento, Morin diz: “Toda a vida é incerta e depara-se constantemente com o imprevisto. O azar pode transformar-se em sorte e a sorte pode transformar-se em azar. A adversidade pode trazer benefícios; a infelicidade pode trazer felicidade” [a tradução é minha]. Esta é uma das maiores lições que tiramos do estado de pandemia. Quanto mais depressa nos habituámos à ideia do intruso, mais depressa fomos capazes de nos levantarmos. O autor assistiu ao des

O Que Nunca Quis Escrever

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  Sempre me achei o máximo. Sempre me considerei atraente, inteligente e bem-sucedido. Durante muito tempo, tive um emprego de sonho, isto é, fazia pouco, tinha estatuto e ganhava bem. Também tive um casamento invejável, uns putos giros nos quadros de excelência, viajei às Maldivas e fui ao Dubai. De um dia para o outro (pelo menos, assim me pareceu), os miúdos ficaram grandes e já não queriam andar às minhas cavalitas, a minha mulher conheceu alguém ainda melhor do que eu e as minhas funções na empresa passaram a ser realizadas por um algoritmo. De um dia para o outro. De um dia para o outro, tornei-me amargo e perito em elaborar teorias da conspiração. Teorias da conspiração contra este ser fantástico e inigualável que eu era. De um dia para o outro, fiquei sem amigos e os meus filhos passaram a inventar elaboradas desculpas para contornar os “fins-de-semana do papá”. De um dia para o outro, passei a ir mais vezes a casa dos meus pais, as únicas pessoas à face da terra que continuara