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A Arquivadora de Sonhos

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(microconto) Sou a Elsa e sou professora-bibliotecária. A escassez de horários de língua portuguesa emprateleirou-me com os livros. Não imaginam o bem que me fizeram... Já tive uma vida dita normal: licenciei-me, arranjei colocação e casei. Tudo isso durou muito pouco tempo. Já nem sei se ainda sou licenciada, dada a distância temporal desse requisito e os inúmeros outros que se lhe vieram juntar e que não cumpri. Sou introvertida, mas gosto de falar com os miúdos. Sou solitária, mas vivo rodeada de personagens e histórias. A minha vida é um sucedâneo de compensações. Não tenho isto, mas tenho aquilo. Não tenho horário completo, mas trabalho na biblioteca, onde mais gosto de estar. Não ganho muito, mas, em contrapartida, não gasto muito dinheiro, pelo que o mesmo me sobra. Não tenho uma família que possa designar de minha, mas tenho sobrinhos e afilhados que adoro e penso ser correspondida. Ao longo dos anos, tornei-me uma espécie de ave-rara, esquisita e seletiva. Comigo mesma. Como q

Lucidez Centenária

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Sobre o último (que, espero, não seja o último) livro de Edgar Morin Nunca conheci ninguém que tivesse chegado aos 100 anos com esta lucidez. Tudo o que se possa dizer sobre este livro é redutor e não lhe faz justiça. Obviamente, enquanto recetora desta obra, fiz-lhe uma leitura muito própria, à dimensão do meu mundo. Limitar-me-ei, portanto, a explorar algumas passagens que me prenderam e que sublinhei. Na verdade, poderia ter sublinhado o livro quase todo... Todo o livro é um convite para aprendermos a lidar/viver com a incerteza. A dado momento, Morin diz: “Toda a vida é incerta e depara-se constantemente com o imprevisto. O azar pode transformar-se em sorte e a sorte pode transformar-se em azar. A adversidade pode trazer benefícios; a infelicidade pode trazer felicidade” [a tradução é minha]. Esta é uma das maiores lições que tiramos do estado de pandemia. Quanto mais depressa nos habituámos à ideia do intruso, mais depressa fomos capazes de nos levantarmos. O autor assistiu ao des

O Que Nunca Quis Escrever

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  Sempre me achei o máximo. Sempre me considerei atraente, inteligente e bem-sucedido. Durante muito tempo, tive um emprego de sonho, isto é, fazia pouco, tinha estatuto e ganhava bem. Também tive um casamento invejável, uns putos giros nos quadros de excelência, viajei às Maldivas e fui ao Dubai. De um dia para o outro (pelo menos, assim me pareceu), os miúdos ficaram grandes e já não queriam andar às minhas cavalitas, a minha mulher conheceu alguém ainda melhor do que eu e as minhas funções na empresa passaram a ser realizadas por um algoritmo. De um dia para o outro. De um dia para o outro, tornei-me amargo e perito em elaborar teorias da conspiração. Teorias da conspiração contra este ser fantástico e inigualável que eu era. De um dia para o outro, fiquei sem amigos e os meus filhos passaram a inventar elaboradas desculpas para contornar os “fins-de-semana do papá”. De um dia para o outro, passei a ir mais vezes a casa dos meus pais, as únicas pessoas à face da terra que continuara

Pão Quente

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Deitou-se no sofá de barriga para cima. Fixou o teto durante longos minutos, à espera que o branco lhe devolvesse uma resposta. Nada. No silêncio da casa vazia, todos os estalidos, os rangeres e as vozes longínquas dos outros apartamentos lhe pareceram uma invasão. Não conseguindo obliterar o sentido da audição, fechou os olhos. Acabou por adormecer. Acordou com os primeiros vestígios da alvorada. Afinal, conseguira dormir. Tomou um rápido duche de água fria. Vestiu a mesma roupa da véspera. Penteou-se. Enfiou a toalha de banho num saco de plástico. Pegou na mochila e no saco de plástico. Saiu. Não olhou para trás. Não olhou para as paredes com marcas de quadros, para o sofá abandonado no meio da sala, não vocalizou no intuito de produzir eco, não inspirou fundo. Saiu. Saiu do prédio. Não olhou para trás, para a sua fachada ou para vislumbrar uma vizinha indiscreta à janela. Passou pelo contentor do bairro. Depositou lá o saco com a toalha e dirigiu-se para a estação de metro. Já senta

Gatos Esfolados

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  Je passe mes heures à lire. Des livres qui m’emmènent ailleurs, des mondes qui n’existent pas, ou pas encore. Je suis trop bête pour le livre. Les écrivains sont un amas d’inside jokes destinées à l’élite. Et puis d’abord les livres qu’on m’a obligé à lire à l’école, ils étaient chiants, il ne me parlaient pas de moi, ils avaient un langage qui fermait la porte au nez du mien. Dormir dans les bras de quelqu’un et s’y réchauffer n’est pas si simple. (…) Le sexe, je m’en fiche pas mal, ce que je veux, ce sont des bras et un corps pour ma tête qui a si froid, pour mes poumons couverts de givre. In Les chats éraflés de Camille Goudeau Desde a infância, os livros são o meu refúgio, longe do que não queria ver ou ouvir. Não sei se aqueles lugares existem ou não, mas prefiro-os aos que piso. Não sei se estou à altura de todos os livros; tiro de todos alguma coisa para mim e isso basta-me. Por vezes, como agora, sinto-me algo desonesta, como se lhes roubasse algo. Não sendo capaz de escrever

Escritura

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“Às vezes, vive-se tanto ou tão pouco que não apetece escrever” Miguel Esteves Cardoso, A Escritura (As 100 melhores crónicas) Não sei dizer se estou a viver muito ou pouco, mas afirmo que não me tem apetecido escrever. Por isso, peço alguma clemência se estas poucas palavras soarem a descuido. Na escrita, tenho a sorte de ser livre. De apenas escrever o que me apetece, quando me apetece, como me apetece e onde me apetece. Não tenho compromissos com públicos, editoras ou meios de comunicação; não escrevo por encomenda ou favor. Já tive a veleidade de querer ser escritora. Ou melhor, de escrever um romance (não é a mesma coisa...). Mas, o bom senso da humildade e da maturidade que os “entas” trazem pôs um termo à minha fantasia. Pelo menos, por enquanto... Acho que ando enjoada... Há tanta gente a escrever, a opinar, a criticar, a analisar, a encontrar culpados e causa... Já não é só a forma que me incomoda. Incomoda-me o conteúdo também. Por uns tempos, acho que vou mergulhar na leitur