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50 Livros Maiores

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O livro “As Cinquentas Sombras de Grey” é o mais vendido da década que agora termina e eu não posso deixar de partilhar o que sinto. Começo por fazer-vos uma confissão: o meu maior ato de masoquismo “literário” foi tentar ler este livro... Sempre repudiei a “opinião” de quem diz não gostar de algo sem nunca ter “provado”. Tal se aplica a todos os quadrantes da vida, de um prato tradicional, passando por pessoas e culminando nos livros. Recordo-me de um jantar de família em que uma discussão deflagrou à volta de um jornalista-escritor português que estava a ser “queimado vivo” por ter escrito um livro que, supostamente, era “contra” a igreja católica. Não vou aqui discutir se gosto ou não gosto, nem tão-pouco apresentar os meus argumentos, mas quero apenas desmontar uma atitude que é por demais recorrente: esta de opinar sobre tudo e sobre todos, sem nunca se ter dado ao trabalho de sequer experimentar. E, à volta daquela mesa, depois de um breve inquérito, concluí que ninguém tin

A Casa

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Já tinha passado dos 40 e estava já divorciada quando o meu pai comprou o casarão. Fui visitá-la com a minha mãe numa tarde de outubro, já o chão se cobrira de folhas cor de fogo e a temperatura apelava à lareira. Nunca percebi e nunca me explicaram os contornos daquela compra. A casa estava parcialmente mobilada, parecendo estar parcialmente habitada, não o estando. Era gigantesca. Daquelas construções de outros tempos, feitas para durar, com compartimentos amplos, nos quais se podia dançar a valsa de Strauss. A minha mãe passou a visita toda a chamar o meu nome e a proferir exclamações: - Laura! Anda ver! Que lindo! - Este vai ser o quarto da Helena! E aquele o do André! - Olha-me estas credências! Parecem ter um dossel! - E estes espelhos! Olha-me estas molduras em talha dourada! Parecem as da basílica do Santo Cristo! - Virgem Santíssima! (...)  A minha cabeça rodava de tanta informação. Por que teria o meu pai comprado aquela casa entre a serra e o mar de Sin

Sobre a beleza do que lemos

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Não tenho a pretensão de escrever recensões de livros ou exprimir a minha opinião sobre a qualidade de uma obra ou do seu autor. Não tenho – nunca terei – a bagagem livresca e extra-livresca que tais exercícios impõem.  Prefiro deixar-me tocar imparcialmente pelos livros e tentar (será sempre uma tentativa...) exprimir o que a sua leitura suscitou em mim, as sensações e emoções. Gosto genuinamente de José Tolentino Mendonça. Da sua simplicidade. Da sua humildade. Da clareza que ele me traz a temas para mim complexos (ao jeito de Morin), nomeadamente, espirituais. A forma despretensiosa com a qual escreve, também em outros livros, sobre o amor, a amizade, os sentidos, a fé. Encontro na leitura de Tolentino Mendonça o mesmo tipo de espanto que sempre encontro na leitura de S. Mateus. A minha fé sai sempre reforçada de um livro de JTM. Eu saio grata. Além do mais, o autor encontra, com os aforismos, uma fórmula cativante de falar com os mais céticos, os mais imediatist

Ressignificação

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Quando resolvi sair da tua vida, tive de me reinventar. Deixei de tomar café para não te encontrar nos sítios dos costume. Depois de alguns dias de enxaqueca, o corte na cafeína até foi benéfico: sentia-me mais calma e com mais vontade de dormir. Limitei ao máximo as minhas idas à cidade. E, quando já não podia adiar mais os depósitos bancários, lá ia resignada, inventando novos percursos e locais de estacionamento. Adaptei-me à vida circunscrita ao bairro, aos vizinhos que cruzam os nossos horários, ao mini-mercado que nunca tem exatamente o que queremos mas tem o que serve. Preenchi a minha vida extra-profissional (a que, entretanto, parecia sobrar) de pequenos acontecimentos que apenas enchiam a agenda: ginásio, musculação, dança, rotina de vídeos cheios de estratégias nutricionais e vivenciais, saídas com amigas que, entretanto, reapareceram, tentativas de leituras, tentativas cinematográficas, tentativas de recheio... Inventava-te mil e dois defeitos para justificar a mi

Circo de Feras

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  Saiu do seu lamento silencioso para o jardim. O cheiro a terra molhada pelas primeiras chuvas foi um bálsamo. Tentara habituar-se à solidão com rotinas egocêntricas. Rituais de beleza, explorações literárias, cinematográfica e musicais, entregas meditativas... Mas as memórias de um passado imperfeito, porque longínquo, arruinavam-lhe a persistência. Os filhos pequenos, o marido vivo, a desarrumação e os sons indistintos. Os aniversários que lotavam a casa, os réveillons sem hora de deitar, a montanha de papel de embrulho pelo Natal. A velocidade das horas não para no apeadeiro dos corações moles, não tem piedade das lágrimas. Nos momentos de maior desespero, dava por si a questionar-se quando e onde teria perdido o controlo. Chorava, sempre em silêncio, deitada de lado, na cama na qual nunca conseguira ocupar o espaço central. Apesar de tudo, tinha procurado encaixar-se na definição de “boa pessoa”. Uma menina bem-comportada, filha de pais humildes, a quem o casamento t

Hábito

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Disseste-me que me habituaria às rugas dele e aos cabelos brancos. Tinhas razão. Habituei-me. Sou mulher. Habituei-me a tudo; aos clássicos masculinos (à tampa da sanita levantada, à roupa desarrumada, às Tupperwares vazias no frigorífico...) e a muito mais... Eu, tão ordeira que sou. O hábito foi a minha defesa, a par dos livros, do trabalho, da corrida. O hábito faz o monge, diz-se, o hábito fez a mulher, digo. O homem nunca cria hábitos; lança âncoras. Há-os que dizem que têm. Mas não têm. Quando muito, têm rotinas, seguranças sem consistência que substituem à primeira alternativa supostamente melhorada, qual espírito cartesiano... Não se habituam a nós. Somos um bem adquirido, indefetível. Talvez nos amem, sim. Amam olhando para o lado, para a TV, as revistas ou redes sociais, cobiçando secretamente outros corpos, saciando-se no nosso, por enquanto. E esse “por enquanto” até pode ser “até ao fim”, mas, no entretanto, nunca bastamos. E vamos competindo, também se

A libélula

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Na hora em que arranco estas palavras ao teclado, pesam-me os olhos e persiste uma acidez na garganta, a dos excessos. Deve ser o não hábito da solidão ou a consciência do fracasso. Não sei. Os pensamentos atropelam-se. Penso nele, no desfecho sem fim à vista da tragicomédia em que a minha vida se transformou. E penso nela. Na libélula. Neste símbolo de transformação, de liberdade, de força. Ainda na ninfa, debate-se, agressiva e predadora. Liberta do seu casulo, resplandece e impõe a beleza e a finura das suas longas asas.  Dizem as más línguas, que a fêmea é uma meretriz e que o macho fura olhos e pica cavalos. Disso nada sei. Sei apenas que o humano tem uma propensão para acreditar em boatos que denigrem, acrescentando-lhes um ponto. Pouco ou nada corre sobre a sua estratégia de contornar obstáculos. Ao que parece, aqueles amantes da fauna que se vestem da cor do cenário que investigam e usam objetivas fotográficas do comprimento de um braço, terão descoberto que este mi

Casa de Memórias

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Apaixonei-me pelas tuas memórias. Pela tua irritante capacidade de fixar o tempo. Com palavras, conseguias fotografar o espaço e o sentimento. Sempre detestei em silêncio os adeptos do Carpe Diem, os esquecidos, os alienados do passado. Os que não choram ao ver fotos antigas, que não têm paciência para falar com os mais velhos na fila do supermercado, que se desfazem da roupa usada com facilidade. Naquele dia de novembro, o meu prumo desabou. Eu, tão cheia de mim, de certezas, de mentiras. Tu, à minha frente, tão cheio de aparente calma, serenidade, incertezas. Esqueci-me do tempo; deixei-me embalar na tua voz. Mas tinhas hora marcada e eu fiquei sem chão. Os dias (as semanas, os meses e os anos...) seguintes foram estranhos. Passei-os a abrir precedentes, a quebrar as regras do meu código, a ser genuinamente feliz. Acho que, sem querermos e sem procurarmos, descobrimos a tal fórmula mágica. O código secreto da harmonia e da plenitude. O dom de tirarmos as palavra

Imprevistos (III)

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As pessoas gostam de recriar personagens e histórias, transferindo a autoria para quem dificilmente a exigirá. Há anos que me divirto à custa dessas mentes de fértil imaginação e mau gosto. Se poderia esclarecer? Dar a minha versão? A troco de quê? As mulheres sem história não têm tempo  de antena, são reduzidas a vizinhas antipáticas e a colegas de trabalho snobes.  Esta aura de mistério que as pessoas me acrescentaram dá-me carta branca para não ir às reuniões de condomínio, dispensa-me das conversas à porta do prédio ou nos patamares e da sardinhada de S. João cá do bairro. As fraquezas de um indivíduo tocam-nos sempre mais do que as suas qualidades. Esta é a verdade inabalável das relações humanas. Pessoas genuinamente felizes não existem ou transportam consigo um segredo de estado que lesa a Pátria inteira. Apenas toleramos os infelizes. A pena é o sentimento (e o desporto) preferido dos portugueses. Não deixam de ser criativas – ou, pelo contrário, padronizada

Imprevistos (II)

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Lá vem ela. Não falha. Sempre à mesma hora. Magrita. Sempre aprumada. O meu homem diz que, se ela vivesse numa mansão, já teria sido assaltada: as rotinas dela são fáceis de estudar. Não se lhe ouve nada: nem o arrastar de uma cadeira, nem o aspirador. A Judite do 3.º frente diz que ela é maníaca por limpeza. Deve passar o chão a pano todos os dias, por causa do pelo dos gatos. Não é de conversas, mas cumprimenta sempre. Não é de mostrar os dentes, mas é afável e educada. Contudo, não dá margem; é assim há mais de 15 anos; desde que se mudou para cá. No outro dia, a Carla da cabeleireira, da Ritus’, que tem uma prima que é da terra da mãe dela, contou lá no salão que ela já foi uma senhora. Muito bem casada, ao que parece, com um empresário da Capital. Mas que caiu em desgraça. Gostava da pinga e isso custou-lhe a vida de um filho pequeno. Uma distração. Uns, dizem que foi numa piscina, outros, de uma varanda. Coitada... E também ficou sem marido. Parece que a respons

Imprevistos (I)

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Entrou no pequeno apartamento às 19 horas e logo os dois felinos se precipitaram ao seu encontro. Como em todos os dias úteis (se é que se podia atribuir esse qualificativo aos seus dias), saiu do trabalho às 18h03 (não fosse o patrão acusá-la de sair antes da hora contratual), dirigiu-se em passo rápido para a Central de Camionagem onde chegou às 18h11, apanhou o autocarro das 18h15 e chegou ao destino às 18h50, mais coisa, menos coisa. A diferença até às 19 horas, ou seja, até ao momento da entrada no dito apartamento dos felinos, corresponde à duração do percurso entre a paragem do autocarro e a sua residência habitual. Se chegasse mais tarde, tal significava que o referido autocarro das 18h15 se tinha atrasado, ou na partida, ou no percurso. Alda não gostava de imprevistos. Mecanicamente, descalçou os botins, arrumou-os, alinhados, na sapateira da entrada, pendurou o Kispo cor de tijolo, calçou as pantufas, foi ao quarto pousar a mochila e dirigiu-se à cozinha onde enfiou o

Necrologia

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Deixei de ser escrava dos ponteiros do relógio desde que vim para aqui. Acho até que rejuvenesci, apesar do ano inscrito na minha certidão de nascimento me parecer tão longínquo e as minhas memórias de infância serem todas a preto e branco. Não me lembro de quem ganhou o concurso de Scrabble na semana passada (se calhar, até fui eu), mas lembro-me do vestido que trazia no dia em que te conheci. Aqui, os dias sucedem-se, iguais, e eu à espera que me venhas buscar... Procuro enchê-los com as coisas de que gosto e que tu conheces bem: estendo o tempo a combinar as minhas roupas (não que queira agradar a alguém, pois nem a ti procurei agradar algum dia), leio vários livros ao mesmo tempo (passando uma hora em cada um; sabes o quanto detesto a monotonia), faço longos circuitos no jardim acompanhada dos meus podcasts favoritos (apesar da insistência das auxiliares para não ir quando está mau tempo), encho as linhas deste caderno... Não estás a ser bom para mim. Sabes que nã