A Casa

Já tinha passado dos 40 e estava já divorciada quando o meu pai comprou o casarão.
Fui visitá-la com a minha mãe numa tarde de outubro, já o chão se cobrira de folhas cor de fogo e a temperatura apelava à lareira.
Nunca percebi e nunca me explicaram os contornos daquela compra. A casa estava parcialmente mobilada, parecendo estar parcialmente habitada, não o estando. Era gigantesca. Daquelas construções de outros tempos, feitas para durar, com compartimentos amplos, nos quais se podia dançar a valsa de Strauss.
A minha mãe passou a visita toda a chamar o meu nome e a proferir exclamações:
- Laura! Anda ver! Que lindo!
- Este vai ser o quarto da Helena! E aquele o do André!
- Olha-me estas credências! Parecem ter um dossel!
- E estes espelhos! Olha-me estas molduras em talha dourada! Parecem as da basílica do Santo Cristo!
- Virgem Santíssima!
(...) 
A minha cabeça rodava de tanta informação. Por que teria o meu pai comprado aquela casa entre a serra e o mar de Sintra? Por que teria comprado uma casa com aquelas características, tão grande, usada, semi-mobilada? Quem teria vivido ali? Que estórias guardava aquele castelo? Por que teriam deixado para trás aquelas obras de arte?...
Entrava num compartimento e abria gavetas, armários, espreitava pela respetiva janela... Ao contrário da minha mãe, permanecia em silêncio, mas o meu ruído mental ia aumentando à medida das minhas descobertas. Uma porta que parecia de armário e abria para um arrumo enorme com prateleiras de alto a baixo, forradas com um papel amarelecido, mas elegante; um gancho enferrujado de criança na gaveta de uma mesa de cabeceira; um quadro retratando a avenida da Liberdade dos anos 20; livros diversos, clássicos da literatura russa, na sua maioria...
Aquela tarde pareceu-me interminável.
Levei mais de um ano a remodela-la.
Nunca um projeto me tinha dado tanta dor de cabeça e, ao mesmo tempo, tanta satisfação, na minha mediática carreira de arquiteta de interiores. Na falta de informações – apesar dos meus esforços para encontrar algumas respostas e enquadramentos – criei cenários, inventei histórias, recriei espaços, pesei cada cor, textura e material...
Hoje, o Natal passa-se aqui, tudo a rigor, tudo aprumado.
A casa já nada tem a ver com a daquela tarde, apesar de aproveitado e restaurado o mobiliário herdado. Hoje, a casa tem vida e tem uma pequena história sem passado.
Regresso àquela casa com frequência e orgulho-me do resultado conseguido.
Contudo, nunca conseguirei apagar as memórias daquela tarde. E com estas as mil e uma histórias que continuam a assombrar-me.


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