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A mostrar mensagens de 2020

Olhei para ti

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  Os dias corridos tolhem-nos o sentido da visão. Habituados que estamos a olhar, horas a fio, para quadrados e retângulos, esquecemo-nos de olhar para a vida à nossa volta. Esta manhã, olhei para ti. Estavas sentado ao meu lado, no carro, e olhei para ti. Não deste conta. Mas, olhei para ti. Olhei para o teu perfil, os teus olhos esverdeados e meigos, a tua barba a despontar. Achei-te lindo e pensei na sorte que tinha de ainda poder olhar para ti e sorri. Não deste conta. Mas, olhei para ti. Sei que tu olhas para mim com frequência e envergonho-me. Envergonho-me do teu olhar, sempre tão admirador e submisso. Envergonho-me hoje por não lhe corresponder tanto quanto deveria. Mas, hoje... Não deste conta. Mas, olhei para ti. Sabes que não gosto de ser fotografada a olhar para a máquina e consciente da objetiva. É assim que gosto de olhar para ti, sem que o saibas ou te apercebas. Esta manhã... Não deste conta. Mas, olhei para ti. Os tempos vão estranhos e afastam-nos do outro. Usamos más

O Sentido de um Fim

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(título descaradamente roubado ao Julian Barnes porque nenhum outro seria tão bom) Diz-se que, com este contexto pandémico, as depressões vão aumentar. Também vão aumentar as falências, a taxa de desemprego, a violência doméstica, os suicídios... Estes aumentos são proporcionais à diminuição do propósito de vida: quanto menos objetivos temos, maior é a probabilidade de engrossarmos as listas acima. Bom, na verdade, as coisas da vida nunca são tão matematicamente lineares, mas gostamos de lhes dar esses contornos racionais, de colocar designações e números em quase tudo. O que quero mesmo é abordar a questão do propósito. Algumas pessoas parecem ter uma espécie de propensão genética para renascer das cinzas. Os palcos dos oradores motivacionais estão cheios destas fénices – que, por definição, são “aves raras” - sobreviventes que fizeram das suas desgraças as suas vitórias. Há também o oposto das fénices, as cassandras, que passam a vida a anunciar desgraças, mas nunca são ouvidas por f

Pretérito Imperfeito

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Começo a dar-me conta dos estragos. No epicentro da quarentena, armei-me em forte, ocupei os neurónios ao máximo e não me apercebi do mal que me infligia. Começo agora a tomar consciência de algumas sequelas. Com a pandemia, tive de abdicar de duas das atividades de que mais gostava. Ambas tinham alguns pontos em comum que, hoje, constituem perdas. Essas duas atividades tinham o benefício de me conseguir desconectar do mundo empresarial e de todos os problemas a este associados. Eram, também, atividades com uma forte componente relacional (embora em mundos bem distintos) que me garantiam a quota de “vida social” necessária a uma sã sobrevivência. Nos primeiros tempos, desdramatizei essas perdas, tentando agarrar-me aos aspetos positivos: o tempo e o dinheiro libertados, as viagens (com o desgaste associado) que deixaram de se fazer, etc., etc.. Hoje, alguns meses volvidos, ficam bem visíveis as perdas... O outro estrago tem a ver com a tal ocupação excessiva de neurónios. O ser humano

O Anfitrião

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Introito (para ti, no dia do teu aniversário, porque te amo)   Na noite de 14 de abril de 1912, um navio com 2208 pessoas a bordo, com destino a Nova Iorque, embateu num icebergue, no Atlântico Norte. 1496 pessoas morreram. 712 sobreviveram. 712 pessoas conseguiram chegar a terra firme, deixando para trás longas horas de horror, carregando nos bolsos algumas joias de família (o que foi possível resgatar “de valor” daquele naufrágio) e a convicção de que as suas vidas ficariam suspensas naquela noite. Todos conhecemos a história, nem que seja por causa do filme de Cameron que retratou a história de amor da aristocrática Rose e do jovem artista Jack. Para quem não viu o filme, aposto que conhecem a música My Heart Will Go On imortalizada por Céline Dion. Em 2009, morreu a última sobrevivente dos 712. A última pessoa com a propriedade de poder contar a sua experiência na primeira pessoa. Contudo, continuamos – e continuaremos – a ouvir histórias inspiradas naquela noite. 712 pessoas tenta

A.S. Antuã

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Nunca gostei de conduzir no Porto. O meu perfil disciplinado e amigo de regras coaduna-se mais com a condução da Capital. As minhas frequentes viagens profissionais à Invicta trazem sempre consigo a dor de cabeça associada à logística da deslocação. Foi por essa razão primária que nasceu um dos rituais mais estranhos que tenho: parar na A.S. de Antuã, Estarreja, beber um galão daquelas máquinas de vending da Delta Cafés, voltar ao carro, inserir as coordenadas no GPS e seguir viagem. Aquele galão sabe-me pela vida e acalma-me os nervos da entrada na selva. Lembro-me de uma vez em que, como habitualmente, parei, mas a dita máquina estava fora de serviço: fiz uma birra digna de uma criança e só me acalmei ao desembocar na Foz do Douro. Poderia ter ido à cafetaria, logo atrás, e ter pedido um galão, mas não seria a mesma coisa. O que é ainda mais estranho é que, quando vou acompanhada, embarco os meus copilotos nesta prova, como se da degustação de um tinto alentejano se tratasse. Perdi a

As Celas deste Mundo

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É impossível passar pela experiência do filme Milagre na Cela 7, sem ficar com todas as estruturas abaladas... É como acabar um livro excelente e ficar com aquela sensação de vazio, de quase-luto... Nada do que vier será tão bom. As redes sociais encarregaram-se de dar a conhecer que o filme põe a chorar até o coração mais duro. O que elas não dizem (ou dizem-no pouco) é que o filme agita, tira o sono, interpela... A mim, pôs-me a pensar nas celas metafóricas deste mundo. São muitas... A primeira cela é a dos pensamentos. Aqueles que não pedimos para ter, que nos invadem, mas, ainda assim, são criados por nós. Aprisionam-nos na medida em que, por causa deles, perdemos a nossa energia vital; aquela energia que nos poderia levar à concretização de coisas maiores. Há a cela do medo (que é, frequentemente, um “anexo” da primeira). O medo de dizer, o medo de responder, o medo de agir. O confinamento nessa cela impede-nos de ir em busca do novo, de explorar novas possibilidades,

Sétimo e último encontro com o escritor

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- Quem é a Ana e quais são os seus valores? - Pergunta densa... - Não é a pergunta pela qual começam todos os livros de autoajuda? - Já não leio livros de autoajuda... - Ainda assim... consegue responder? - Por onde começar? - Pelo princípio. - Fui uma criança que viu, ouviu e sentiu coisas que não deveria ter visto, ouvido e sentido. - Depois... - Enquanto adolescente, desenraizaram-me e continuei a ver, ouvir e sentir o que não devia. - E depois? - Já adulta, vivi tempo de mais a ilusão de poder construir uma vida sem essas cenas de vida, mas, inconscientemente, atraí-as de novo para mim. Voltei a ver, ouvir e sentir o que não devia... - A história continua? - Quando, recentemente, tomei consciência desta repetição de ciclos, comecei, finalmente, a mudar o meu destino. Ainda não deixei de ver, ouvir e sentir aquelas cenas, mas estou a caminho. Ironicamente, têm sido os meus guias, os meus critérios na definição dos meus valores. E os meus valores são, afin

Manifesto

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Nos últimos tempos, e à medida que me fui libertando de algumas grilhetas e convenções, tenho-me apercebido que as pessoas não gostam de ouvir a nossa verdade, preferindo ficar-se pela deles e por aquilo que se convencionou chamar de “politicamente correto” (Deus, como detesto esta expressão!). A maioria das pessoas – sobretudo as que se julgam diferentes – vivem uma série bem camuflada de “pazes podres”, não gostam de ser apontadas e são as primeiras a apontar o outro. Ficam muito escandalizadas quando ousamos dizer o que pensamos, sem hipocrisias ou eufemismos, mas esquecem-se de se ouvir ou de se ler. Julgam-nos com o seu olhar reprovador e as suas sentenças censuradoras, mas não gostam de passar pelo crivo de ninguém. Fico triste. Fico triste e preocupada com o meu futuro em sociedade, pois o preço que me pedem para pagar é muito alto. Pedem-me para me calar, para pesar e medir as minhas palavras, para adaptar o meu registo quando me encontro em contexto e ambiente aparente

Uberistas 1

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Mudam-se os tempo, mudam-se as profissões. Nos últimos tempos, converti-me aos uberistas e confesso-me rendida. É como ter um James (o Ambrósio já deve estar reformado) à porta dos sítios de Lisboa onde me movo. São educados, igualmente faladores e, no último Natal, um deles até me ofereceu um Ferrero Rocher. Ah! E são multifunções. Hoje, foi assim: - A Menina está mesmo carregada!... - Não me diga nada... - Aposto que são alergias... - Também... - Está a tomar alguma coisa? - Sim, para a gripe. E pastilhas para a garganta. - Não está a tomar nada para as alergias?! - Ocasionalmente, tomo o Cetix, quando estou muito aflita. - Isso não faz nada! Tem de tomar o Zyrtec! - Ui! O Zyrtec põe-me a dormir... Estou cá em trabalho; tenho de estar concentrada... - Mas agora há um novo, um Zyrtec que é mais fraco. Devia experimentar. - Sim, talvez experimente... - Olhe que eu sei o que é isso! Sofro imenso também. Até que descobri este novo Zyrtec. Também sou massag

A Leitura e a Veleidade da Escrita

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Queria escrever um texto sobre a minha vontade de escrever, sobre o sentido da minha escrita, mas, em vez disso, sou transportada para um gosto maior, um gosto primeiro e primário: o da leitura. Lembro-me de ter aprendido a ler rapidamente, pelo prazer da autonomia e da descoberta; lembro-me até de exibir os meus dotes de leitora, muito pequena. Filha única, os livros ocupavam o vazio da irmandade inexistente, das longas ausências dos meus pais, em trabalho, da solidão. Depois dos livros infantis, veio a coleção “Uma Casa na Pradaria” de Laura Ingalls Wilder, que devorei; mais, tarde, vi a série na TV e orgulhava-me de já saber o que se iria passar, ao pormenor. Sempre gostei mais de livros do que de filmes... Foi também a leitura que me levou à paixão pela língua portuguesa (que, embora sendo a minha língua materna, se se entender por “materna” a que se ouve na barriga da mãe, não é a minha língua primeira). Lembro-me de passar um verão inteiro a dissecar Os Maias a golpes de

Meta-identidade do Escritor

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Nota : O texto que se segue pode conter elementos de “spoiler”. Acabei anteontem a leitura do último livro de João Tordo, A Noite em que o Verão Acabou. Apesar das festas de final de ano e de o livro ser algo volumoso, li-o em duas semanas.  Esta avidez fez-me lembrar a experiência que tive com o livro do suíço Joël Dicker, La Vérité sur l’Affaire Harry Quebert (li a versão francesa; a versão portuguesa intitula-se A Verdade sobre o Caso Harry Quebert, trad. de Isabel St. Aubyn), Grande Prémio de Romance da Academia Francesa. A obra deu, mais tarde, origem à série The Truth About the Harry Quebert Affair, protagonizada por Patrick Dempsey. À semelhança do “Thriller” de Tordo, o livro de Dicker também nos dá conta de um escritor. Contudo, não pretendo aqui fazer comparações. Esta remissão faz-se apenas pelas sensações despertadas. Li alguns comentários ao livro de Tordo e uma boa parte questiona a classificação de Thriller. Outros questionam a fotografia da capa (quem é a ra