Meta-identidade do Escritor

Nota: O texto que se segue pode conter elementos de “spoiler”.

Acabei anteontem a leitura do último livro de João Tordo, A Noite em que o Verão Acabou. Apesar das festas de final de ano e de o livro ser algo volumoso, li-o em duas semanas. 
Esta avidez fez-me lembrar a experiência que tive com o livro do suíço Joël Dicker, La Vérité sur l’Affaire Harry Quebert (li a versão francesa; a versão portuguesa intitula-se A Verdade sobre o Caso Harry Quebert, trad. de Isabel St. Aubyn), Grande Prémio de Romance da Academia Francesa. A obra deu, mais tarde, origem à série The Truth About the Harry Quebert Affair, protagonizada por Patrick Dempsey.
À semelhança do “Thriller” de Tordo, o livro de Dicker também nos dá conta de um escritor. Contudo, não pretendo aqui fazer comparações. Esta remissão faz-se apenas pelas sensações despertadas.
Li alguns comentários ao livro de Tordo e uma boa parte questiona a classificação de Thriller. Outros questionam a fotografia da capa (quem é a rapariga morena se Laura é loira?) ou a extensão do livro. Não vou questionar nada disso. Gostei do livro. Ponto.
Contudo, gostaria de partilhar convosco o que, de facto, me interpelou nesta obra: as reflexões que nos chegam pela voz do próprio List (escritor), de Pedro Taborda (aspirante a escritor), de Anne (a colega de Faculdade) e de Mookerjee (o colega de quarto do aspirante a escritor e, quanto a mim, o verdadeiro guru em desenvolvimento pessoal do livro) sobre a identidade do escritor, sobre o seu merecimento:
[List]
- Os escritores são todos uns miseráveis e uns infelizes. O Hemingway matou-se com um tiro de carabina, o Dostoievsky foi exilado para a Sibéria. A Virginia Woolf suicidou-se, era bipolar. O Carver e o Cheever, no Iowa, ficavam no carro a gelar, de madrugada, à espera que a loja de bebidas abrisse.
- (...) também escrevemos para que o mundo nos ouça e nos reconheça e nos dê o mérito que achamos merecer mais do que ninguém.
- Um escritor acomodado é um escritor morto, Taborda. (...) a escrita não se compadece da vaidade. (...) É um exercício de casmurrice, de masoquismo. E é preciso aceitar que é um milagre que alguém nos queira ler, Taborda.
- O tumor que extraí foi o do vício do sucesso, da ambição. A necessidade de que os outros me leiam ou aprovem aquilo que eu faço.
- Essas palavras que tem para escrever vão mantê-lo à superfície, por pior que venha a ser o livro. Essas palavras, que o matam por dentro, também são as palavras que o mantêm vivo, Taborda.
[Pedro Taborda]
- Achei que era isto que queria fazer na vida, ser escritor. Mas talvez esteja enganado, já existem demasiado escritores no mundo. Grandes autores, nomes de referência, monstros sagrados. O universo não precisa de mais um pretendente com pouco talento.
 [Anne]
Tens essa paixão romântica. A tua relação com os livros é a relação que a maioria das pessoas tem com outras pessoas. (...) Aquelas pessoas admiram a literatura. Usam-na como escape. Ou como vício. Ou como forma de as compensar por alguma coisa que lhes falta.
[Mookerjee]
Estás condenado ao fracasso porque tomaste a decisão de fracassar (...). Preparaste cuidadosamente o teu fracasso, mesmo antes de aqui chegares. És o Messias negativo.
Eu, eterna aspirante a escritora, sublinhei estas passagens durante a minha leitura e refleti sobre a identidade de quem escreve. Tenho dito.

A banda sonora de hoje é sugestão de um seguidor: deleitem-se!

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