O Anfitrião

Introito (para ti, no dia do teu aniversário, porque te amo)

 

Na noite de 14 de abril de 1912, um navio com 2208 pessoas a bordo, com destino a Nova Iorque, embateu num icebergue, no Atlântico Norte. 1496 pessoas morreram. 712 sobreviveram.

712 pessoas conseguiram chegar a terra firme, deixando para trás longas horas de horror, carregando nos bolsos algumas joias de família (o que foi possível resgatar “de valor” daquele naufrágio) e a convicção de que as suas vidas ficariam suspensas naquela noite.

Todos conhecemos a história, nem que seja por causa do filme de Cameron que retratou a história de amor da aristocrática Rose e do jovem artista Jack. Para quem não viu o filme, aposto que conhecem a música My Heart Will Go On imortalizada por Céline Dion.

Em 2009, morreu a última sobrevivente dos 712. A última pessoa com a propriedade de poder contar a sua experiência na primeira pessoa. Contudo, continuamos – e continuaremos – a ouvir histórias inspiradas naquela noite. 712 pessoas tentaram reconstruir-se, refazer as suas vidas, partilhar a sua versão da história, deixando um legado que se perpetuará no tempo. Alguns desses sobreviventes deixaram de herança a familiares joias, peças ou objetos que estiveram naquele navio.

 

O Anfitrião

 

Quando Lisboa começou novamente a ser inundada por turistas, se descia a rua Garrett sem ouvir uma palavra lusa e a tarifa dos hotéis disparou para um mínimo de 100,00 € a noite, descobri o conceito Airbnb.

Troquei a rua Castilho e as artérias hoteleiras do Campo Grande pelos antigos bairros chiques da Capital e redescobri Roma e Areeiro. Gratificante.

Passei a ter anfitriões em vez de rececionistas com plaquinhas na lapela, a preparar o meu pequeno-almoço e a despejar o lixo à saída.

Se tal aconteceu, por necessidade, num contexto profissional, com a chegada da pandemia, acabei por “arrastar” a família para esses ersatz de lar, durante as férias. Mais seguro, argumentava eu.

Naquele verão, eu e o meu marido – os miúdos, entretanto, crescem... - quisemos regressar a um dos muitos locais onde fomos felizes. Um local de história oculta, mas que carrega consigo a magia da interseção do mar, da serra e da lagoa. Um lugar perdido no meio deste Portugal moderno, que manteve orgulhosamente a traça dos seus anos áureos.

Foi assim que ficámos em casa do Nick (nome fictício), um britânico que, como tantos outros, se apaixonou por Portugal. A casinha que nos foi atribuída tinha um pátio interior maravilhoso onde apetecia estar e conversar até tarde. O nosso anfitrião era um homem tímido, de olhar doce, mas rosto e coração dilacerados. Não tivemos coragem para perguntar a razão daquelas múltiplas cicatrizes, que, pela sua localização e configuração, pareciam ter resultado de um trágico acidente. Percebemos rapidamente que o Nick simpatizou connosco, com o nosso inglês polido e irrepreensível, com o nosso trato educado e cortês, com a rara cumplicidade que une alguns (cada vez menos) casais para a vida e se manifesta no tom de voz, nos gestos e no olhar.

Como nós, o Nick gostava de detalhes. Detalhes esses que estavam presentes na decoração da casa e do pátio, na escolha do léxico e na música ambiente escolhida para nos acompanhar num dos nossos serões no pátio.

Se ficasse por aqui nas minhas descrições do Nick, poderiam criar a falsa representação de um britânico impecavelmente vestido e a cheirar a Old Spice. Não é o caso. Penso que vimos o Nick sempre com a mesma t-shirt desbotada, de calças de fato de treino e chinelos. No nosso último dia, veio despedir-se de meias grossas, daquelas que as avós costumavam oferecer pelo Natal, mas puídas pelo uso e pelo tempo. Uma genuinidade vista e sentida.

Não, nunca conversámos mais de 10 minutos. O Nick foi sempre comedido nas palavras e notava-se que estava determinado em dar-nos espaço e paz.

 

As joias de família

 

No nosso penúltimo dia, o Nick estava à janela quando chegávamos de mais um longo passeio e maratona fotográfica pela lagoa. Perguntou-nos se planeávamos jantar fora e respondemos afirmativamente. Pediu-nos para aguardar alguns minutos; que tinha uma sugestão para nós.

Aguardámos, sentados no pátio, convencidos de que nos traria um nome ou uma referência gastronómica.

Demorou algum tempo, mas acabou por aparecer; trazia duas pequenas caixas alongadas.

Dirigiu-se a mim e, ao mesmo tempo que abria as caixas, perguntou-me se eu lhe daria a honra de usar aquelas joias no nosso jantar. Explicou-nos que aquele colar (com um diamante sul-africano) e aquela pulseira de brilhantes tinham pertencido à sua tia-avó que os salvara, juntamente com a sua vida, do naufrágio do Titanic. Por segundos, fiquei sem palavras, mas enquanto a voz de Nick se embargava ao dizer que era uma pena aquelas joias nunca verem a luz do dia e não serem usadas e mostradas, percebi que tinha de aceitar a missão, agradeci e só me lembrei de dizer que não tinha trazido roupa à altura, mas que as usaria ainda assim.

Naquela noite, do alto dos meus 50 anos, com as minhas teimosas e indisfarçáveis rugas, senti-me uma modelo dos anos 80 da Van Cleef & Arpels.

 

Nunca saberei se aquela história era verdadeira, se aquelas joias foram, de facto, resgatadas do Titanic, ou se tudo não passou de efabulações de um ser solitário e sofrido.

Sei contudo que nunca esquecerei o olhar de gratidão do Nick quando, no dia seguinte, ao devolver-lhe as joias, lhe disse que me tinha sentido honrada em usá-las e que me tinham feito sentir especial.




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