Necrologia

Deixei de ser escrava dos ponteiros do relógio desde que vim para aqui.

Acho até que rejuvenesci, apesar do ano inscrito na minha certidão de nascimento me parecer tão longínquo e as minhas memórias de infância serem todas a preto e branco.

Não me lembro de quem ganhou o concurso de Scrabble na semana passada (se calhar, até fui eu), mas lembro-me do vestido que trazia no dia em que te conheci.

Aqui, os dias sucedem-se, iguais, e eu à espera que me venhas buscar... Procuro enchê-los com as coisas de que gosto e que tu conheces bem: estendo o tempo a combinar as minhas roupas (não que queira agradar a alguém, pois nem a ti procurei agradar algum dia), leio vários livros ao mesmo tempo (passando uma hora em cada um; sabes o quanto detesto a monotonia), faço longos circuitos no jardim acompanhada dos meus podcasts favoritos (apesar da insistência das auxiliares para não ir quando está mau tempo), encho as linhas deste caderno...

Não estás a ser bom para mim. Sabes que não gosto de socializar com os outros utentes, de fazer conversa. Aborreço-me. Impaciento-me. Não me sinto igual a eles. Nem melhor, nem pior. Só não sou igual. Quem não teve ou sentiu o que eu tive e senti, não sabe. Tive-te.

Mentiste-me. Disseste-me que nunca me deixarias e deixaste. E estou para aqui sozinha. Quando não estou a casar saias e camisas, a viajar nas estórias dos outros, a pisar as folhas no jardim ou de caneta em punho, estou com a cabeça enfiada no jornal da terra, à procura do meu nome na necrologia.

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