Circo de Feras

 Saiu do seu lamento silencioso para o jardim. O cheiro a terra molhada pelas primeiras chuvas foi um bálsamo.
Tentara habituar-se à solidão com rotinas egocêntricas. Rituais de beleza, explorações literárias, cinematográfica e musicais, entregas meditativas...
Mas as memórias de um passado imperfeito, porque longínquo, arruinavam-lhe a persistência. Os filhos pequenos, o marido vivo, a desarrumação e os sons indistintos. Os aniversários que lotavam a casa, os réveillons sem hora de deitar, a montanha de papel de embrulho pelo Natal.
A velocidade das horas não para no apeadeiro dos corações moles, não tem piedade das lágrimas.
Nos momentos de maior desespero, dava por si a questionar-se quando e onde teria perdido o controlo. Chorava, sempre em silêncio, deitada de lado, na cama na qual nunca conseguira ocupar o espaço central.
Apesar de tudo, tinha procurado encaixar-se na definição de “boa pessoa”. Uma menina bem-comportada, filha de pais humildes, a quem o casamento tinha concedido o dote de uma casa abastada. Fizera sempre de tudo para nunca desmerecer o que julgava ser sorte. Fora uma esposa dedicada até ao último suspiro, uma mãe presente, pedagógica, protetora, uma avó das que ainda contam estórias de fadas, princesas e príncipes, de cabeça.
Um dia, numa das cada vez mais rarefeitas visitas da neta mais velha, esta dissera-lhe:
- Vó, a vida é um circo de feras.
Ao regressar a casa do jardim, e ao trocar o cheiro da terra molhada pelo cheiro do vazio, percebeu. Os entretantos que eram as suas esperas.

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