Imprevistos (II)

Lá vem ela. Não falha. Sempre à mesma hora. Magrita. Sempre aprumada.

O meu homem diz que, se ela vivesse numa mansão, já teria sido assaltada: as rotinas dela são fáceis de estudar.

Não se lhe ouve nada: nem o arrastar de uma cadeira, nem o aspirador. A Judite do 3.º frente diz que ela é maníaca por limpeza. Deve passar o chão a pano todos os dias, por causa do pelo dos gatos.

Não é de conversas, mas cumprimenta sempre. Não é de mostrar os dentes, mas é afável e educada. Contudo, não dá margem; é assim há mais de 15 anos; desde que se mudou para cá.

No outro dia, a Carla da cabeleireira, da Ritus’, que tem uma prima que é da terra da mãe dela, contou lá no salão que ela já foi uma senhora. Muito bem casada, ao que parece, com um empresário da Capital. Mas que caiu em desgraça. Gostava da pinga e isso custou-lhe a vida de um filho pequeno. Uma distração. Uns, dizem que foi numa piscina, outros, de uma varanda. Coitada... E também ficou sem marido. Parece que a responsabilizou. Coitada...

São injustos os homens. Querem dado e arregaçado. Querem a casa limpa, o comer na mesa, festas de aniversário fartas... Nós fazemos tudo: parimos e cuidamos dos filhos, não podemos dar um passo em falso... Somos sempre culpadas.

Coitada. Pergunto-me como ela aguentará tudo isto. Os imprevistos da vida matam.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Sim

Longe daqui

O Mundo Dela