Imprevistos (III)

As pessoas gostam de recriar personagens e histórias, transferindo a autoria para quem dificilmente a exigirá. Há anos que me divirto à custa dessas mentes de fértil imaginação e mau gosto.

Se poderia esclarecer? Dar a minha versão? A troco de quê? As mulheres sem história não têm tempo 
de antena, são reduzidas a vizinhas antipáticas e a colegas de trabalho snobes. 

Esta aura de mistério que as pessoas me acrescentaram dá-me carta branca para não ir às reuniões de condomínio, dispensa-me das conversas à porta do prédio ou nos patamares e da sardinhada de S. João cá do bairro.

As fraquezas de um indivíduo tocam-nos sempre mais do que as suas qualidades. Esta é a verdade inabalável das relações humanas. Pessoas genuinamente felizes não existem ou transportam consigo um segredo de estado que lesa a Pátria inteira. Apenas toleramos os infelizes. A pena é o sentimento (e o desporto) preferido dos portugueses.

Não deixam de ser criativas – ou, pelo contrário, padronizadas – as conjunturas sobre a minha vida. A história do filho morto... eu que nem cheguei a ser mãe.

A única conformidade é o fracasso do meu casamento. Durou pouco. Depressa percebi o erro de casting, o cenário berrante, o guarda-roupa mal escolhido.

Depressa percebi que não suportaria o duplo jogo duplo (passo o pleonasmo): o do homem, que possui, mas cobiça o alheio; o meu, de mulher, que nunca se sentiu como tal, enclausurada num corpo estranho.

A história dos outros que nos contam são uma sucessão de imprevistos. A minha não foge à regra.


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