Lucidez Centenária

Sobre o último (que, espero, não seja o último) livro de Edgar Morin


Nunca conheci ninguém que tivesse chegado aos 100 anos com esta lucidez.


Tudo o que se possa dizer sobre este livro é redutor e não lhe faz justiça. Obviamente, enquanto recetora desta obra, fiz-lhe uma leitura muito própria, à dimensão do meu mundo. Limitar-me-ei, portanto, a explorar algumas passagens que me prenderam e que sublinhei. Na verdade, poderia ter sublinhado o livro quase todo...


Todo o livro é um convite para aprendermos a lidar/viver com a incerteza. A dado momento, Morin diz: “Toda a vida é incerta e depara-se constantemente com o imprevisto. O azar pode transformar-se em sorte e a sorte pode transformar-se em azar. A adversidade pode trazer benefícios; a infelicidade pode trazer felicidade” [a tradução é minha]. Esta é uma das maiores lições que tiramos do estado de pandemia. Quanto mais depressa nos habituámos à ideia do intruso, mais depressa fomos capazes de nos levantarmos.


O autor assistiu ao desaparecimento do convívio entre vizinhos, das conversas ao balcão das tascas, no metro... O desaparecimento das porteiras [muitas delas portuguesas], dos “picas” nos comboios... Em contrapartida, assiste hoje à rarefação das saudações nos espaços comuns dos prédios, ao crescente anonimato, à precipitação, ao nervosismo dos automobilistas. Qualquer pessoa que se encontre na minha faixa etária, isto é, entre os 40 e os 50 anos, já fez, certamente, o mesmo tipo de constatação. Contudo, só com uma retrospetiva de 100 anos temos a sabedoria [no sentido de sagesse] de aceitar estas mudanças, sem nostalgias, serenamente.


Morin tem uma visão peculiar sobre as fake news. Em vez de apontar o dedo a quem as produz e veicula, responsabiliza quem as receciona. “O perigo de sermos desinformados é muito grande quando não dispomos nem de várias fontes, nem de pareceres ou opiniões diferentes sobre um mesmo acontecimento” [mais uma vez, a tradução é minha]. Na verdade, a questão não é a de não dispormos... Não faltam hoje fontes de consulta sobre os mais variados temas. Como também não faltam opiniões... A questão é que, na nossa preguiça mental, não vamos atrás dessas fontes ou opiniões, preferindo aceitar sem questionar. Carecemos de sentido crítico. Mas, isso, Morin é demasiado cortês para o dizer. É um francês da velha guarda...


Em vez disso, insta à contínua aprendizagem; diz ele que devemos nos instruir constantemente e verificar periodicamente os nossos conhecimentos (que se desatualizam a uma velocidade cada vez mais alucinante, digo eu). Diz que devemos fazer uma revisão da nossa visão do mundo de 10 em 10 anos. Acho isto fantástico!

Levamos o carro à revisão, fazemos check-ups médicos, revemos os objetivos das nossas empresas, mas não revemos (eu não conheço ninguém que o faça) a visão que temos do mundo, um mundo cujas transformações não conseguimos acompanhar...


Na parte final do livro, e com a humildade desarmante dos grandes pensadores, Morin deixa-nos alguns princípios cuja regra preliminar é INTERROGUE-SE SOBRE O QUE PARECE NORMAL OU EVIDENTE.


O primeiro princípio ou imperativo diz respeito à contextualização dos conhecimentos. Qualquer fenómeno ou ação só pode ser concebido num dado contexto, tal como uma palavra polissémica só assume o seu real sentido numa frase.


O segundo princípio é o reconhecimento da complexidade. Todo o indivíduo, acontecimento ou fenómeno é multidimensional e, por vezes, antagonista e contraditório.


Terceiro e último princípio: é necessário saber distinguir o que é autónomo do que é original, e saber ligar o que está conectado ou se encontra combinado.


Poderia dizer muito mais sobre este livro, mas penso que já há aqui matéria para muita reflexão.


Apenas concluo com uma frase que consubstancia a minha maior descoberta dos últimos tempos (sim, só me apercebi disso agora...): o caminho para o futuro passa pelo regresso à fonte.





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