Óleo de Cedro

Voltei hoje àquela praia após quinze anos.
Assim que pus o primeiro pé na areia e a minha vista alcançou as barraquinhas, lembrei-me logo dela.
Éramos vizinhos de praia.
Reservávamos as barracas de um ano para o outro para conseguir os melhores lugares.
Apesar de um ano inteiro sem contacto, sabíamos que, logo no primeiro dia, a menina Idalina - Lina para os amigos - lá estaria.
Chegávamos por volta das nove e meia, eu, a minha mãe a minha irmã. Hei-de morrer sem ter visto o meu pai pisar a areia e ir ao mar.
Quando chegávamos, a Lina já lá estava:
- Gosto dos primeiros movimentos na praia – Dizia ela.
Embora bastante mais novo, acho que tinha uma paixoneta pela Lina. Fingia não prestar atenção àquela “conversa de mulheres”, mas sorvia cada comentário, cada máxima, cada ritual, cada cheiro.
Vinha sempre sozinha, nunca falou muito do resto da sua vida e dos restantes onze meses do ano. Essencialmente, “trabalhava para o bronze”: ia ao mar em linha quase recta, não fosse pelas toalhas estendidas, entrava sem vacilar, molhava-se até ao pescoço e regressava junto à barraquinha onde se secava ao sol; fazia esse trajecto umas seis vezes ao dia. Só se abrigava às horas de maior calor, no pico do sol, para evitar insolações e repunha o bronzeador Piz Buin umas quatro vezes. Nunca molhava o cabelo, que trazia sempre preso em carrapito com um elástico da cor do biquíni. Quando repunha o bronzeador, aproveitava para vaporizar o referido penteado com um spray protector que cheirava a óleo de cedro, aquele que a minha mãe usava lá em casa para reparar a madeira das mobílias. Tinha – dizia ela – três biquínis de cor diferente, mas religiosamente da mesma marca, do mesmo modelo e do mesmo tamanho: detestava marcas de bronzeado sobrepostas e indefinidas.
Alguns anos depois, quando ia buscar a Paula à loja de móveis onde ela trabalhava, ficava uns segundos em suspenso a inalar aquele cheiro que eu qualificava de “agradável”. Hoje descobri, quando voltei àquela praia, que era o cheiro do cabelo da Lina.


Comentários

Rita disse…
Muiiito giro! Lembrei-me logo de S. Martinho do Porto! A descrição é tão parecida que me levou a relembrar as "tias" todas que tinham perfil idêntico ao da Lina.
Os anos passaram, e o percurso foi peneirado com os passos irregulares ditados pelo movimento dos netos!
Quem me dera voltar atrás...tão bom!
Ana Bela Cabral disse…
É uma praia imaginária, como tantas outras...
Mas Linas há muitas, creio eu, bem como recordações de praia. :)
Beijo grande
Rita disse…
Quanto mais irreal se torna o cenário da escrita, mais real a recordação do belo infantil, não achas?
Ana Bela Cabral disse…
Talvez, sim...
Recordações haverá sempre, mesmo na escrita dos que lhes pretendem fugir.
Embora distante na cronologia, a infância está-nos mais próxima do que imaginamos, não é?
Esta noção de tempo, tão subjectiva... ;)
Rita disse…
Toda a verdade nas tuas palavras e quanto mais o tempo passa, mais difícil se torna olhar para trás...
boa noite,
vim aqui ter um pouco com aquelas folhas secas de outono que são empurradas pelo vento, sem destino ou direcção predefinida. comecei a ler... e não parei, de tal forma fiquei agarrado às palavras, aos cheiros, aos sons, às descrições pormenorizadas, aos pormenores que nos passam despercebidos diariamente. também tenho um blogue, desde 2006, mas ultimamente tenho-o descurado um pouco. os seus textos relembraram-me o prazer da escrita, a beleza de um texto, com princípio, meio e fim, o encadeamento lógico de uma ideia que se quer transmitir. fiquei com vontade de escrever...
obrigado pelas palavras e pelos sons. passarei certamente mais vezes por aqui...
Ana Bela Cabral disse…
Obrigada pela visita, Caro José Alberto. Também dei uma saltada ao seu blogue e GOSTEI MUITO! Parabéns! Pela simplicidade, pela transparência, pela lucidez... :)
Até breve!

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