Reposteiros

Antes de abrir a porta, já sabia o que me esperava: o vazio.
A minha ex aproveitou a minha viagem à Beira para despejar o apartamento. O “contrato” era aparentemente certeiro: quando decidimos juntar os trapos, eu comprei a casa, ela comprou o recheio e encarregou-se da decoração. Quando decidimos separar-nos, eu fiquei com a casa, ela com o resto. Bem vistas as coisas, até me correu bem: só tive de ir passar um fim-de-semana à terra natal. Não tive de me preocupar com caixotes e empresas de mudanças.
Como homem prevenido que sou, trouxe da terra o saco-cama dos tempos do campismo em Mira. Não achei que precisasse de mais alguma coisa. Recusando-me a reocupar o quarto do meu descontentamento, instalei a minha nova cama na sala, junto à lareira, com a “cabeceira” virada para a janela. Para variar, queria adormecer a olhar lá para fora…
Foi aí que me apercebi da “herança”… Não me lembro de ter desembolsado um cêntimo naquilo… A minha ex tinha-me deixado os reposteiros da sala pregados à parede! A minha primeira reacção foi de revolta: como é que ela ousou?! Já ouvia os comentários no pasto de lugares-comuns das alcoviteiras do meu prédio: «Coitado, ela foi embora e levou-lhe tudo. Só deixou os reposteiros!»
Como nunca consegui odiar ninguém, passei a odiar aqueles reposteiros.
No início, dei por mim a conjecturar algum tipo de mensagem codificada ali deixada, até chegar à óbvia conclusão de que o emissor carecia de inteligência para tão sofisticado canal…
A presença daqueles coxins em altura TINHA de ter um significado sub-reptício ou a minha presença naquele antro de eco estava seriamente comprometida. Teria andado a ler livros do Dan Brown a mais? Pelo sim, pelo não, aproveitei a primeira tarde livre que tive para me enfiar na biblioteca municipal à procura de pistas.
Descobri que, na origem, o reposteiro era um ofício real, isto é, alguém que nas Casas Reais portuguesas se ocupava de guardar objectos preciosos numa câmara. Também lhe competia guardar a fruta, o sal, as facas de trinchar e, mais tarde, as especiarias. Já no século XVI, a sua função era guardar a tapeçaria, as alcatifas e os coxins. Daí – julgo eu – o seu sentido mais “moderno”. Tinha ainda funções mais específicas: em funerais, por exemplo, o reposteiro acompanhava a liteira que levava o caixão, tirava o pano que o cobria e, no final dos ofícios, voltava a cobrir o caixão. Também tinha de chegar a almofada ou a cadeira ao rei sempre que este se deslocava à capela…
No final daquelas infrutíferas leituras, apenas concluí não ter eu perfil de reposteiro-mor. Eu, que nada guardava ou chegava a alguém…
Naquela mesma noite, acordei em sobressalto, armado de um pé-de-cabra a tentar desvendar o conteúdo da câmara secreta que tinha pregada à parede da sala. Era o fim da história. Não encontraria nas Páginas Amarelas a rubrica Desmontador de Reposteiros, mas encontraria certamente um amigo com jeito para a bricolage que me ajudaria de bom grado. Ponto final.

Comentários

Rita disse…
Gostei!
Beijinhos!

Vê se gostas do último que escrevi em
http://coisasdarai.blogspot.com/

=)
Ana Bela Cabral disse…
Já espreitei.
O sentimento descrito é-me familiar...
A minha única regra é não forçar nada: escrever apenas quando tenho vontade!
Beijinho e obrigada pela visita.

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