A Casa do Sono: quando a tradução nos interpela

                O que é que nos leva a gostar ou não de um livro? No caso d’A Casa do Sono, diria que foi o diálogo que suscitou entre mim, o autor e o seu tradutor.

                Para começar, levei alguns capítulos a entender o porquê da atribuição do prestigiado prémio francês Médicis a esta obra de Jonathan Coe. Embora original e divertida, a história é tecida sem grandes profundidades literárias ou surpresas.

Para resumir, o romance gira em torno de 4 personagens, colegas de universidade, em dois tempos distintos das suas vidas, com um intervalo de cerca de 12 anos. A estória tem a particularidade de alternar, nos capítulos ímpares, os tempos de estudantes e, nos capítulos pares, os acontecimentos que ocorreram 12 anos depois. Os encontros e os desencontros entre personagens ocorrem tendo sempre, como pano de fundo, a temática dos distúrbios do sono e um dos principais cenários, Ashdown, é, simultaneamente, a residência universitária onde todos viveram e, mais tarde, uma clínica para tratamento desses distúrbios, onde se dão alguns reencontros.

Porém, a dado momento, paralelamente a um congresso de Psiquiatria, é descrito um estudo de caso que o Psiquiatra responsável caracteriza como se segue: «Esta é uma história (…) sobre a linguagem e as partidas que ela nos prega; sobre o modo como a linguagem se conluia com o inconsciente; sobre a perversa aliança entre a ordem do significado e o conteúdo recalcado da mente neurótica.» Sendo a linguagem um dos meus temas de predileção fiquei, de imediato, de alerta e mergulhei com o autor no que viria a revelar-se um emaranhado de jogos de palavras e um autêntico desafio à tradução. Não me lembro de ter lido um livro com tantas notas do tradutor; chega a haver um subtil desabafo deste mestre das palavras: «A tradução, num caso destes, revela-se extremamente difícil. Daí que se tenha optado por não traduzir no texto certas expressões ou frases fulcrais do discurso da Sarah, reservando-se a tradução para as notas de rodapé».

Nos meus primórdios de tradutora, recordo-me de ter lido algures que as notas do tradutor eram a sua vergonha. Pode esta afirmação ser discutível, mas, aqui, não restou ao colega outra alternativa. O seu trabalho é exemplar e consegue passar despercebido ao ritmo que o autor pretendeu imprimir. Ou não?

Essa reflexão levou-me a questionar a relação entre o autor e o tradutor. Terá Jonathan Coe sequer pensado nos desafios que essa passagem colocaria à tradução? Ao escrevê-la pensou que algum dia seria traduzida? Não creio e não penso que o autor deva fazer esse exercício.

Recordo-me que quando a obra de Milan Kundera foi censurada no seu país de origem, o autor passou a escrever, num primeiro tempo, só para tradutores. Instalado em França e começando a dominar a língua, ficou horrorizado com a leitura das primeiras traduções e passou a controlar o processo. São famosos os seus Testamentos Traídos.

Poderão perguntar-me o que estas deambulações têm a ver com A Casa do Sono. Penso que respondem à minha pergunta inicial: gosto de um livro que me leve a viajar.

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