Audição Seletiva

 

- Em 30 anos de carreira, este é o segundo caso que me aparece...

Proferia a sua sentença, enquanto apontava alternadamente com o indicador direito para as depressões de 2 gráficos contíguos.

Explicou-lhe, trocando por miúdos e abstendo-se da utilização de jargão técnico,  que não ouviria mais naquela frequência específica. Era irreversível.

Às perguntas “trabalhou em ambiente fabril” e “há algum caso na família” respondeu negativamente.

Saiu do consultório com uma receita mínima e a instrução de lá voltar dentro de 6 meses “para ver se a coisa não se agrava”.

O percurso até ao carro pareceu-lhe interminável. O veículo estava estacionado perto de uma zona de obras, mas, por sugestão, nada ouviu. Estava, como muitas vezes estava, metida no seu silêncio.

O que teria provocado aquilo?

Poderia a perda auditiva resultar de um choque emocional?

Teria uma audição seletiva?

Porquê?

Lembrou-se dos muitos problemas de ouvidos na infância, dos gritos, de não gostar de barulho e de discussões. Lembrou-se de não gostar de estar com a cabeça em baixo de água. Lembrou-se de ser acusada de não prestar atenção, de não ter ouvido algo em específico... 

Lembrou-se, mas não quis lembrar mais.

O passado era cheio de ruído, o futuro afigurava-se mais silencioso e ela gostava de silêncio.

Teria uma audição seletiva?






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