O Apartamento

 A Marta queria vir comigo. Disse-lhe que não, que tinha de ir sozinha.Subi os três lanços de escadas, rodei a chave 4 vezes e mergulhei na penumbra. Instintivamente, procurei o interruptor na parede, carreguei... nada. Era óbvio que a eletricidade tinha sido cortada.Apesar dos anos, ainda tinha fresco o mapa mental daquele apartamento. Se fosse em frente, encontraria a sala de jantar; teria de ir até ao fundo para chegar à janela e abrir a persiana. Fui às apalpadelas, pelo lado direito. Nem me lembrei da lanterna do telemóvel.Encontrei o que queria. Tive de fazer uma certa força na correia da persiana que estava emperrada. O sol de setembro agrediu-me as vistas recém-habituadas à escuridão.A sala estava igual: o móvel de sala gigante, repleto de cristais e dos livros do meu tio, a mesa e as 6 cadeiras pesadonas de madeira escura.Voltei ao corredor, agora com alguma luz, e passei à cozinha. Fiz o mesmo procedimento de abertura de persianas e de reconhecimento do local. Seguiu-se o quarto e a sala de estar que também já tinha sido a divisão onde a minha tia costurava; a minha divisão “preferida” da casa, onde eu brincava com restinhos de tecido com os quais vestia as minhas bonecas durante o dia e se transformava no meu quarto à noite.Dei voltas à casa à procura de diferenças, como num passatempo de revistas. Abri armários, gavetas, caixas; as mesmas roupas, louças, utensílios...Nada parecia ter mudado desde que dali saí há cerca de 40 anos, quando os meus pais regressaram da emigração e me resgataram do cativeiro.


Quarenta anos de um discreto afastamento, de silêncios, de cumplicidades, para o bem de todos...

Porquê eu? Porquê ser a escolhida e fiel depositária de um lar que nunca o foi, de um ninho de revoltas e frustrações? Nunca saberei. 

O meu tio foi o último a partir. Era com a minha tia que eu partilhava o sangue, mas apenas isso. Teria ela deixado essa instrução? Teria ele decidido sozinho? O que farei com este legado?

Sentei-me no sofá - o mesmo que se reclinava e se transformada na cama onde dormi milhares de vezes - e aguardei por alguma resposta, um palpite, uma revelação.

Se o Diogo estivesse comigo dir-me-ia para não gastar neurónios com aquilo, para doar o recheio e colocar o imóvel à venda numa imobiliária. Simples.

Mas o Diogo também sabe que nunca escolho o caminho mais simples e que o que quer que ele me dissesse não alteraria nada à decisão que estava ainda nas entranhas do labirinto que é a minha cabeça.


A resposta chegou algumas semanas depois, bem longe dali, do epicentro das minhas cogitações.

O que fazer a uma herança sem sentido? Inesperada? 

O que fazer de um bem que nunca senti como meu e do qual me afastei/fugi durante anos, deliberadamente? Um local agrafado a memórias de solidão, medo, escuridão?

De regresso de uma viagem de trabalho que fez brotar a resposta procurada, peguei na planta do apartamento agrafada ao testamento e sentei-me ao estirador. Afinal, sou arquiteta; algum destino vou dar à coisa.

Em três dias, esvaziei mentalmente aquele apartamento, derrubei paredes no papel, rebaixei tetos a carvão, fiz nascer focos de luz, inverti a origem de todos os materiais, desenhei mobiliário, visitei hortos, falei com decoradores... Só me faltou fazer um mapa astral.

Iria transformar aquele apartamento no meu local de trabalho. A decisão impôs-se como um decreto.

Não estava eu farta de me queixar de trabalhar em casa?

Pois bem, iria dar àquele local o sentido que lhe faltava, apoderar-me dele, enchê-lo de visitantes e luz.





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