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Entremets

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  Não houve mais nada a seguir, nem seria necessário. Se já experimentaram a sensação de terem uma sala de cinema só para vós, imaginem terem um restaurante para gaudio privado. Entra-se e é-se logo abraçado pela sobriedade decorativa e pelo atendimento made in escola suíça, braço atrás das costas. Rapidamente percebemos que seríamos um misto de únicos clientes da noite e cobaias gustativas. Provavelmente, lemos bem e fomos bem lidos.   Entrada, prato de peixe, prato de carne, sobremesa 1 e sobremesa 2. O prato minimalista é pousado na mesa e acompanhado de um contexto. Um meio-caminho entre nouvelle cuisine e festim para todos os sentidos. Como sempre, fiquei do teu lado direito com acesso visual privilegiado à cozinha envidraçada. Quando o chefe de sala terminava a sua explicação e se retirava, Samuel fixava-se em nós e perscrutava cirurgicamente todas as nossas reações. Creio que também nos lia os lábios. Entregámo-nos sem rede àquela dupla e até o nosso vinho alentejano ...

Dez Novembros

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Aquelas semanas de novembro deixaram uma marca na minha vida como pegada na lua. Começou com a viagem a Madrid. Lembro-me que estava bom tempo para novembro e que trocámos mensagens que terminavam com beijos doces e chantilly. A mala ia carregada de esperanças de negócios fáceis e voltou sem estes, mas com o coração mais aconchegado. De regresso a Portugal, somos acolhidas com a notícia do sangrento ataque ao Bataclan. As inexplicáveis imagens entravam pelas nossas casas adentro, deixando pavor e incompreensão. Aquilo tocou-me e, durante dias, dormi pior do que já dormia.  Na semana seguinte, fui a França em trabalho. O tempo piorou, entretanto. Nas poucas voltas que consegui dar, deparei-me com rostos tristes e medrosos. Os escaparates coloriam-se de títulos garrafais a remeter para a tragédia. Comprei a Paris Match para memória futura. Como se fosse possível esquecer... Lembro-me que também trocámos mensagens. Recomendavas prudência. Dizia-se que os ataques não ficariam por ali e...

Linha Azul

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Atravesso a espaçosa sala das bilheteiras, saio para a rua. Dou de caras com um grupo de 4 muçulmanos ajoelhados e virados para Meca. É o Ichá, dirão os entendidos. Procuro o início da fila dos táxis. Parece que passou a ser perigoso apanhar Ubers à noite e, assim, não tenho de esperar e de tentar decifrar marcas de carros e matrículas ao longe. A visão já não ajuda. Entro. O meu motorista é brasileiro e não sabe onde fica o bairro de Pedralvas. “Meta Benfica no GPS. Havemos de nos desenrascar”. Desenrascamos. De manhã, chamo um Uber. A praça de táxis ainda é longe e, de dia, o risco é menor. Lá vem o Edemilson. Brasileiro. A conduzir um carro manifestamente pequeno para o seu tamanho. Desconfortável (ele, o condutor). Vocifera a cada fila  de trânsito (onde estão os uberistas que nos perguntam se o ar condicionado está bom, se queremos mudar de estação de rádio e nos oferecem um Ferrero Rocher?).   Para compensar, trabalho em locais fantásticos e aprendo que me farto. O traba...

A Superfície

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  Sou uma baleia.   Não pelo tamanho, mas pelo modo de sobrevivência. No fundo do mar, tenho um habitat temporário, turvo e povoado. Consigo ficar submersa por algumas horas, porque me foco na superfície.   Penso nesse momento em que me encaminharei para lá, Em que esguicharei o ar quente e poluído, Em que inspirarei o ar puro e concretizarei a minha troca gasosa.   Mesmo longe, comunico-me contigo. E quando te encontro, é lá que me reproduzo e amamento,   É à superfície que descanso. É à tona que me oriento e me encontro: olho para o sol e navego... Para ti.   És a minha superfície.

A Pradaria

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Durante muitos anos, como D. Quixote, lutei contra moinhos de vento. Lutas inglórias, como se sabe.   Nos dias em que estava mais inspirada, sentia-me como se tivesse escrito um best-seller e tivesse os holofotes editoriais todos apontados para mim à espera do próximo lançamento. Ouvia vozes: “nenhum livro que ela venha a escrever será tão bom quanto o último”, “quem ela julga que é?”, “deve ser plágio, de certeza!”. Eu que nunca escrevi nada...   Ou, melhor, escrevo agora. Escrever salva-me da perda da razão, acalma-me, ilumina o turvo, dá sentido à minha confusão mental. Mas não escrevo para os outros; apenas para mim, para servir os meus propósitos de clarividência. Seria incapaz de escrever algo não-genuíno. Se a minha escrita vier, um dia, a afetar positivamente outros, terá sido apenas um efeito colateral. É a história do voluntário ao contrário: o voluntário dá aos outros e recebe mais do que dá, eu escrevo para mim e posso vir a dar aos outros... sem certezas...  ...

Sim

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Os anos de solidão anestesiaram-me os sonhos ao ponto de pensar que já não poderia sonhar. As lutas profissionais monopolizaram as minhas dores, as minhas horas, as minhas noites. Menina, com a cabeça sempre enfiada em livros, eu costumava flutuar. Mulher, embora com a cabeça em livros, aterrei na realidade de uma vida sem sonhos. Depois, conheci-te.   E, pouco a pouco, ano após ano, a solidão foi-se dissipando porque tinha alguém a quem mandar mensagem quando chegava ao destino, alguém a quem contar o meu dia, alguém em quem despejar as minhas frustrações. As lutas profissionais continuaram, mas havia as sextas à noite, um horizonte contigo, conversas sem fim, um colo... E o meu dia chegou, aquele que nunca pensei viver, o meu sonho. Ajoelhaste-te, pensei que estavas – como é teu hábito – a brincar comigo. Não levei a mal a brincadeira e entrei nela, sentei-me ao colo do teu joelho enterrado na areia húmida. E, nervoso, estendeste-me a caixinha, abriste-a, pediste-me para casar co...

Café Correia

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Felizmente, gostas de conduzir em Nacionais. Eu não gosto, mas gosto de parar em sítios pitorescos, seja para tirar fotos, seja para tomar um café e ir à casa de banho. Lembras-te do Café Correia? Aquele que ficava numa terra cujo nome existe em vários distritos do nosso Portugal? Nem sei por que pergunto. É óbvio que te lembras. Tu é que não te ias lembrar?! Até aposto que te lembras do nome da terra! Bem, mas voltemos ao Café Correia. Estávamos a precisar desesperadamente de um café e, eu, de ir à casa de banho. Conhecíamos, por já lá ter estado, um café no nosso percurso e dirigimo-nos lá. Estava fechado. Perguntaste por um café aberto a um transeunte e este indicou-te o Café Correia, a 100 metros dali. Estacionámos logo a seguir a uma curva que deve ter o epíteto de “curva da morte” como 8974 curvas em Nacionais portuguesas (razão pela qual não gosto de conduzir nelas). O café ficava do outro lado da estrada. Atravessámos (o ato mais perigoso do dia) e entrámos no dito café. Ou, me...