Obras de arte não deveriam ter nome ou Conto de Natal quase surrealista

Martha estava decidida a aproveitar aquela tarde entre o Natal e o Ano Novo para levar as filhas ao museu. Não tinha tido dúvidas na escolha do local. Embora a cidade tivesse uma oferta imensa, há muito que Martha elegera o melhor museu da cidade. Até já tinha lá levado as meninas, ainda pequenas, na esperança de despertar nelas precocemente o gosto que nela era inato. Não tinha tido muito sucesso e esperava agora poder cumprir esse desejo.
Apesar das temperaturas negativas, o sol decidira espreitar por entre os palácios e nem mesmo a poluição das petroquímicas assombrou o cenário ideal para a ida ao museu. Vestiram-se casacos quentes, luvas, cachecóis e boinas de lã; calçaram-se as botas mais confortáveis. Martha enfiou na sua mala a tiracolo 2 bloquinhos de notas e 2 lápis. O metro deixou-as na praça do grande imperador. Começava a viagem.
A exposição temporária de quadros surrealistas de um coleccionador privado no piso - 2 era a justificação que faltava para animar as meninas.
Martha encorajou as filhas a tirarem notas sobre o que iam vendo: os nomes dos pintores que mais tinham apreciado, por exemplo, ou a descrição do quadro de que mais tinham gostado. De vez em quando, convidava as meninas a descreveram consecutivamente o que viam num quadro determinado:
- É uma árvore, mãe!
- Não é nada: é uma senhora a dançar e, aqui, um senhor a tocar guitarra, não vês?
A mais velha olhava depois para o título inscrito à esquerda do quadro e olhava para a mãe com um olhar desiludido, quase triste…
Não foi necessário repetir este exercício muitas vezes para as meninas entenderem que raramente a sua interpretação da obra batia certo com o título da mesma.
Vieram as inevitáveis perguntas difíceis:
- Mãe, quem dá o título às pinturas? É o próprio pintor?
- Mãe, não achas que deviam tapar o nome do quadro e depois, se nós quiséssemos, poderíamos destapá-lo?
- Melhor: e se pusessem um papel para cada visitante dar o seu título?
Martha deu as respostas pedagogicamente correctas que se impunham mas ficou insatisfeita. Na viagem de regresso vinha a pensar com que direito as obras de arte ostentavam um nome?! Independentemente de quem lho tinha posto, o nome ou título de um obra não formatava já a interpretação e a apropriação de quem a admirava?
Este estado de inquietude, depois de amainado, fez Martha sorrir: tinha cumprido o seu desejo.

Comentários

Rita disse…
Se calhar até vem a propósito...vê
HTTP://coisasdarai.blogspot.com/2011/12/espelho.html

Beijinhos aos montinhos para ti, Aninhas!
Ana Bela Cabral disse…
Sim, Amiga, tem tudo a ver...
Caminhos, espelhos, o nosso olhar sobre as coisas...
Adoro-te.

Mensagens populares deste blogue

Sim

Longe daqui

O Mundo Dela