Às Tias

Às tias do mundo todo e de todo mundo.
Às tias que não tiveram vida própria, que viveram para os outros, que criaram sobrinhos, que enfeitaram igrejas.
Às tias que deixam saudades imensas e recordações ainda maiores.

Descansa em paz, Tia Maria.

«A Vida Secreta da Tia Maria Amélia

«À quoi bon raconter la fin d’une histoire
quand le commencement s’en est perdu»
Jean-Paul Sartre in Les mots

A notícia chegou um Sábado de manhã cedo, inesperada como uma corrente de ar. Helena ainda estava na cama, naquele torpor do levanta-não-levanta. A tia Maria Amélia tinha morrido. Do outro lado da linha, a Menina Branca usava o tom de quem ainda não acredita, mas tem de cumprir uma obrigação ingrata.
Helena ficou paralisada por uns momentos, sem saber se devia começar por analisar a sua reacção amorfa ao telefone ou o facto da morte da tia Maria Amélia em si. Sábado. Até o dia fora escolhido a dedo. Sábado é um dia discreto. As novidades não são comentadas com os colegas de trabalho, quase passando despercebidas. Não é sequer necessário justificar as faltas no trabalho…
Depois de acordar dos seus devaneios, Helena ligou à mãe. Que a tia Maria Amélia tinha morrido. Que fora paragem cardíaca. Que a Branquinha estava a tratar de tudo. Que o enterro devia ser na segunda-feira. Que ela ia para o Porto assim que tomasse banho e se vestisse. Que aguardava que a mãe lhe dissesse se conseguia um voo a tempo para a ir buscar ao aeroporto. Que ainda não estava em si.
Sem paciência e força anímica para ir à arrecadação buscar a mala de viagem, enfiou três ou quatro mudas no saco da ginástica. A tia Maria Amélia teria achado mal, pensou. Tomou uma duche rápida. Vestiu-se. De Preto. O que não era difícil dado que indumentária preta era coisa que não lhe faltava no armário. Não por sucessivos lutos, felizmente, mas por irremediável atracção à cor. Bebeu um iogurte líquido e meteu uma banana na mala. Tinha agora uma hora de viagem à sua frente para pôr as ideias em ordem.
Entrou no carro e assim que rodou a chave na ignição, foi assaltada pela música da sua estação habitual, num volume que lhe pareceu desmesuradamente alto. Desligou a rádio, algo que já não fazia há muito quando andava de carro, decidida a dedicar a viagem aos seus pensamentos e ao silêncio.

Helena tinha 15 anos quando os seus pais decidiram sair da aldeia minhota “à procura de uma vida melhor”, dizia-se, em França. A decisão de deixar Helena com a tia Maria Amélia no Porto não foi pacífica. Helena gravou para sempre na sua memória a imagem do seu pai a chorar na despedida, e a da sua mãe fingindo que a separação seria breve.
Também para Helena não foi um período fácil. Em plena adolescência, vira-se forçada a deixar amizades, viver sem os seus pais e mudar-se para a grande cidade, para casa da tia Maria Amélia, uma quase desconhecida…
Contudo, essa fora a parte mais fácil. Maria Amélia era doce, como a da canção, doce e generosa. Desde o primeiro dia, armando-se de uma força missionária, fez tudo o que estava ao seu alcance para tornar a estadia da filha da sua irmã em sua casa numa das melhores experiências da sua vida. Conseguira-o com êxito. Viveram juntas quinze anos. Até Helena, já formada, completar os trinta e decidir aceitar uma proposta de trabalho na terra natal.
Maria Amélia era a mais velha de cinco irmãos. Cinco irmãos que ajudou a criar, sustentar e casar. Só depois da morte dos pais e de se certificar que os irmãos estavam “arrumados” é que decidiu deixar a aldeia minhota e tratar da sua própria vida. Foi servir para casa de uma senhora, já velha, oriunda da velha burguesia portuense. Como tudo o que já tinha feito na sua vida até então, entregou-se à sua nova tarefa de corpo e alma. Cuidava da velha senhora com um zelo de mãe que comovia. Não seria atrevimento afirmar que os últimos anos da senhora foram dos mais agradáveis e serenos da sua longa existência. Ao ponto de a anciã ter contemplado Maria Amélia no seu testamento, tendo-lhe deixado quatro assoalhadas no bairro do Bonfim.
Começava, então, uma nova fase na singela vida de Maria Amélia. Passou a arrendar quartos a estudantes na sua “nova” casa e fê-lo – como em tudo o que fazia - com todo o empenho. Dizia que era o seu “emprego”. Acordava às sete da manhã, preparava os pequenos-almoços, arejava os quartos, punha a roupa a lavar, arrumava e limpava os quartos e o resto da casa, preparava os almoços para quem viesse almoçar (tinha colada ao frigorífico uma lista com os alimentos que cada hóspede não gostava ou não podia comer), arrumava a cozinha, tratava da roupa, projectava o jantar, ia às compras (conhecia os melhores e mais baratos sítios do bairro), fazia o jantar para quem viesse jantar, arrumava a cozinha e ainda arranjava tempo para deixar uns tabuleirinhos com chá de camomila à porta das hóspedes mais noctívagas e para pôr a arder umas velinhas nos dias das frequências e dos exames.
Sempre impecável, a casa da Tia Maria Amélia cheirava a alfazema e a sabão de Marselha. Com a Dona Gertrudes, que velou até à morte, aprendeu “a etiqueta e as boas maneiras” da alta sociedade portuense. Punha uma mesa com esmero e graça. Era muitíssimo delicada no trato. Andava sempre vestida a rigor, sem exageros, com o cabelo ajeitado “à sua maneira” (dormia sempre com rolos), pois achava que o dinheiro que se deixava no cabeleireiro era um desperdício. Gostava de personalizar as suas peças de roupa aplicando-lhes florzinhas em tecido, lantejoulas ou pérolas.
Tudo quanto sabia, ensinou à sobrinha Helena. Com paciência, serenidade, zelo. Sem pressa (“amanhã também é dia”), sem ansiedade, sem ambição. E tudo Helena colheu. Com curiosidade, admiração, respeito. Tornou-se uma exímia cozinheira, uma dona de casa de mão-cheia, uma mulher perspicaz e atenta, capaz de dosear o silêncio na hora certa. Os quinze anos que passou com a Tia Maria Amélia moldaram indelevelmente a sua personalidade e a sua existência.

Estava a pensar naqueles leilões nas mansões das famílias falidas a que a Tia Maria Amélia gostava de a levar, quando Helena estacionou à porta de casa da tia. Tomou consciência da perda assim que rodou a chave, abriu a porta e se apercebeu que a casa estava na penumbra e não cheirava nem a alfazema, nem a sabão de Marselha…
Depois do enterro, Helena levou a mãe ao aeroporto e comunicou-lhe que ficaria uns dias no Porto para tratar de burocracias e da parca herança material da Tia Maria Amélia. Essa fora a sua expressa vontade: que Helena tratasse de tudo.
Começou então a sua viagem ao mundo da Tia Maria Amélia: pedaços de um mundo que ela já conhecia e pedaços novos que lhe fizeram descobrir uma Maria Amélia mulher, falível, maculável… Mas, nada, absolutamente nada, que fizesse Helena mudar de opinião ou se desafeiçoar.
De entre as descobertas que fez ao remexer em papelada, armários, baús e caixinhas, Helena elegeu como alvo das suas investigações sobre a intimidade da Tia Maria Amélia – que sempre fora um mistério muito bem guardado - um lote de correspondência amorosa trocada com um certo Henrique Neto. O que mais intrigou Helena foi o facto de haver cartas datadas de há mais de vinte anos e outros muito recentes. Tudo indicava tratar-se de uma “relação” antiga. Como lhe escapara tamanha façanha?
As cartas não estavam seladas e as moradas do remetente e da destinatária não vinham inscritas no envelope. Helena depressa concluiu que, a haver um intermediário, este – ou melhor, esta – só poderia ser a Menina Branca, amiga, vizinha e confidente da Tia Maria Amélia. Sem perder mais tempo, Helena agarrou no molho de cartas, saiu de casa, atravessou a rua e tocou à campainha da Menina Branca.
- Bom dia, Menina Branca. Tem um minuto?
- Claro, Menina Helena. Suba!
Helena subiu apressadamente o lanço interminável de escadas e penetrou na casa sombria da Menina Branca. Estendeu-lhe o molho de cartas ainda no corredor.
- Sabe o que é isso, Menina Branca?
- Acabaria por descobrir mais tarde ou mais cedo…
- Quem é esse Henrique Neto?
- Uma paixão antiga… Mas, ele era casado… Enviuvou há pouco tempo…
- Casado?!
- Sim, Menina. A situação não era fácil…
- Onde é que ele mora?
- Aqui perto, Menina Helena, muito perto…
- Pode dar-me a morada?
- Para quê? Vai falar com ele? Ele nem sequer veio ao enterro ontem!
- Vá lá, Branquinha. Sem demoras…

Helena subiu as duas ruas indicadas pela Menina Branca, ensaiando o que haveria de dizer a Henrique. Tal como previsto pela Menina Branca, foi a velha empregada que abriu a porta.
- Bom dia. Gostaria de falar com o Senhor Henrique Neto. Ele está?
- Não, Menina… O Senhor Henrique Neto morreu esta manhã.
- Morreu?! Mas… De quê? Como?
A velha senhora começou a soluçar baixinho.
Helena esboçou um sorriso: da casa, vinha um agradável cheiro a alfazema e sabão de Marselha.
- De desgosto… Morreu de desgosto. – Pensou Helena.»

Conto escrito em 5 de Agosto de 2010.


Comentários

Rita disse…
Que lindo, Ana! Nem tenho palavras "corretas" para qualificar este teu post. Uma maravilha, simplesmente.

<3

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