Atravesso a espaçosa sala das bilheteiras, saio para a rua. Dou de caras com um grupo de 4 muçulmanos ajoelhados e virados para Meca. É o Ichá, dirão os entendidos. Procuro o início da fila dos táxis. Parece que passou a ser perigoso apanhar Ubers à noite e, assim, não tenho de esperar e de tentar decifrar marcas de carros e matrículas ao longe. A visão já não ajuda. Entro. O meu motorista é brasileiro e não sabe onde fica o bairro de Pedralvas. “Meta Benfica no GPS. Havemos de nos desenrascar”. Desenrascamos. De manhã, chamo um Uber. A praça de táxis ainda é longe e, de dia, o risco é menor. Lá vem o Edemilson. Brasileiro. A conduzir um carro manifestamente pequeno para o seu tamanho. Desconfortável (ele, o condutor). Vocifera a cada fila de trânsito (onde estão os uberistas que nos perguntam se o ar condicionado está bom, se queremos mudar de estação de rádio e nos oferecem um Ferrero Rocher?). Para compensar, trabalho em locais fantásticos e aprendo que me farto. O traba...
Sou uma baleia. Não pelo tamanho, mas pelo modo de sobrevivência. No fundo do mar, tenho um habitat temporário, turvo e povoado. Consigo ficar submersa por algumas horas, porque me foco na superfície. Penso nesse momento em que me encaminharei para lá, Em que esguicharei o ar quente e poluído, Em que inspirarei o ar puro e concretizarei a minha troca gasosa. Mesmo longe, comunico-me contigo. E quando te encontro, é lá que me reproduzo e amamento, É à superfície que descanso. É à tona que me oriento e me encontro: olho para o sol e navego... Para ti. És a minha superfície.
Um ano. A mais. A correr. Tudo na mesma. Para o bem. Para o mal. Um ano. As mesmas rugas de expressão. O mesmo peso. O mesmo cabelo branco. Perdido. Só. A mesma aversão pelos cortes de cabelo. Um ano. A lutar. Contra o tempo que escasseia. Contra a impotência. A minha e a dos outros. Contra o tumor benigno que incomoda. Contra a lista dos livros que quero ler. Um ano. E continuo… Obcecada pela ordem, pela simetria. Na estante, na secretária, no carrinho das compras. A tentar reciclar-me meditando. Um ano. E continuo… A chorar os meus avós, a minha infertilidade. A celebrar a minha mão-cheia de amigos, A saúde da minha família, A sorte de amar esta labuta. Os bons livros, a boa música, as boas vozes. Continuo por cá.
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