Fronteira
Bateu numa árvore a fazer marcha-atrás. Foi o primeiro
sinal.
Quando o carro foi para abater, devia ter ido ver a
amolgadela pela última vez. Mas não fui. Não me lembrei. Tive pena do carro
(que, ao longo dos mais de 20 anos, transportou lenha, garrafões, caixas de
mercadoria para o café…), mas não me lembrei da amolgadela. De qualquer modo,
acho que eu seria a única pessoa a vê-la, a nota-la.
Durante o meu longo calvário, aquele embate veio-me muitas
vezes à memória. Tinha sonhos com o carro branco a fazer marcha-atrás. Acordava
sempre no momento do choque. Em nenhum dos sonhos saio do carro e digo basta.
Diz-se que os sonhos carregam mensagens do subconsciente. Diz-se…
A minha vida com o Mário resumiu-se a embates. Embates dos
quais saí sempre amolgada, mas continuei a carregar. Pelos filhos, por ele –
que dizia nunca ser capaz de viver sem mim -, nunca por mim, frágil e amolgada.
Tentei muitas vezes justificar-me. O amor. O amor que nos
ludibria e nos diz que é possível mudar, conceder, perdoar.
Tentei muitas vezes justifica-lo a ele. A infância dura, a
morte precoce do pai, a mãe que carregou a família e as dívidas. A mãe austera
e manipuladora, incapaz de um toque ou de uma palavra suave.
Fui fiadora no altar e paguei eu a fatura. Apanhei os cacos
todos. Colei-os vezes sem conta. Poli as superfícies. Retoquei as pinturas. Empenhada,
mas vazia…
Quando os filhos se governaram e saíram de casa, já era
tarde. Eu própria era um caco, um despojo, um palhaço triste…
Hoje, sentada ao lado do seu caixão, continuo a não encontrar
sentido para a minha persistência. A persistência que bateu e embateu mas nunca
furou a pedra.
Não sinto nada. Zero. Nem pena, nem tristeza, nem alívio.
É ténue a fronteira entre o amor e o ódio.
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