Coleção
Sempre fui uma mulher prática. Não era fiel a
nenhum supermercado. Ia àquele que me dava mais jeito e à hora que me dava mais
jeito. Não fazia lista de compras: passava rapidamente em quase todos os
corredores (excluindo o dos alimentos para animais, o das fraldas e acessórios
para bebés e o das bebidas espirituosas) e ia colocando no carrinho apenas
aquilo de que precisasse.
Eu que achava um desperdício de tempo aquele
que se passava em supermercados, passei a ocupar o que me sobrava em virtude da
reforma a visitar religiosamente esses espaços, como quem passa os alfarrabistas
a pente fino à procura de um livro raro.
Da primeira vez, não dei muita importância.
Coloquei os sacos na mala do carro e, quando fui recuperar a moeda, lá estava
ela: amarrotada e sozinha como que colada à grade metálica. Peguei nela,
admirei rapidamente a caligrafia e, sem saber porquê, enfiei-a na carteira. A
segunda apareceu algumas semanas mais tarde, mas desta vez encontrei-a ao ir
buscar um carrinho. Lembrando-me da primeira lista, pensei na coincidência do
encontro e enfiei-a também na carteira.
Numa dessas tardes vazias que os reformados
tentam preencher com o sentido da utilidade, procurei as duas listas na
primeira gaveta da minha secretária e pus-me a analisá-las e a compará-las com
divertimento. Eram em tudo diferentes. Uma, escrita numa caligrafia de
professora de escola primária, numa folha pautada de formato pequeno, imaculada
e sem erros ortográficos. O conteúdo e a seleção dos bens denotava harmonia e
precisão. Outra, de escrita irregular, quase infantil, ocupava o verso de um
daqueles panfletos de mestres africanos que encontramos nos para-brisas dos
carros.
Não sei explicar porquê, mas – em pouco tempo
– dei por mim a percorrer os supermercados da região à procura de listas de
compras abandonadas nos carrinhos e no chão junto aos carros. A vontade de
vasculhar os caixotes do lixo não me faltou. Em um mês já tinha seis. Cada
viagem ou excursão com as amigas era um bom pretexto para enriquecer a coleção
e, em alguns meses, até já tinha uns espécimes em línguas indecifráveis.
Tornou-se o meu passatempo favorito.
Catalogava-as cuidadosamente por tipologias e punha-me a imaginar as pessoas
que as escreveram, as famílias por trás daquelas necessidades, o que
cozinhariam com os alimentos. Quase obsessivo. Imaginava-me a dissertar sobre o
perfil socioeconómico que se podia traçar com base naqueles achados. Tentava
selecionar a lista que mais correspondia às minhas necessidades e imaginava a
alma gémea por trás daquela criação.
Com o tempo, as listas foram desaparecendo do
fundo dos carrinhos. Primeiro, imaginei que fosse o aumento da consciência
ecológica que levava agora as pessoas a depositar o papelinho no lixo adequado.
Até que uma das minhas netas me explicou que as listas eram agora feitas nessas
maquinetas que chamam de telemóveis.
Comentários
Regresso... Depois de uma loooonga ausência. :)