Fait-divers 1

Era empregado bancário, usava fato e gravata, parecia importante.

Naquele dia, passaram-lhe a chamada:

- Tens de vir depressa, o avô está morto, não sei o que se passou.


Quando chegou a casa dos pais, o cenário era perturbador: a mãe chorava descontroladamente e a sobrinha parecia estar em estado catatónico. O pai, estendido no chão da sala, parecia morto, de facto. Não foi capaz de lhe tocar.

Ligou para o 115, respondeu às perguntas sem vacilar, só queria que viessem rapidamente.

Na verdade, não se lembra do tempo que demoraram a chegar, mas pareceu-lhe tempo a mais. Tudo lhe parecia a mais. Sobretudo as recomendações:

- Não toque em nada.

Depois da emergência médica foi a espera pelo Médico Legista. Mais uma longa espera. Demasiado longa. 

Declarado o óbito, seguiu-se a espera pelos senhores da agência funerária. 

Tudo somado, pareceram-lhe várias horas, não se lembra exatamente de quantas. Foram muitas, demasiadas.


Quando chegaram os dois senhores de fato preto, chegou com eles, finalmente, o momento de tirar o pai ali do chão. Um deles queixou-se de uma dor forte no fundo da coluna e pediram a ajuda dele para retirar o corpo dali. Aquele breve contacto com o corpo frio do pai ditou a entrada na espiral que hoje aqui partilhamos convosco e que desembocou no crime.


Os 3 dias que se seguiram apagaram-se da sua memória e o que sabemos é-nos relatado por vizinhos e conhecidos. 

Não queria estar ali pelo que se prontificou a ir buscar a irmã e o cunhado ao aeroporto da capital, ficou sempre sentado na última fila da capela mortuária, não falou com ninguém, não acompanhou o pai à sua última morada, não carregou uma parte do caixão, não deitou um punhado de terra para a cova, nada.


A espiral prosseguiu o seu minucioso trabalho. Mudou de vida. Saiu do banco. Fez a primeira tatuagem, rapou o cabelo, fez mais tatuagens. Depois, vieram os piercings nos mamilos, os alargadores nas orelhas, mais tatuagens, os amigos estranhos que ninguém conhecia, os “metal fests”, mais tatuagens.

Dizem os vizinhos que era sossegado, mas que a casa começou a ser frequentada quase diariamente por um público feminino igualmente tatuado.

As entrevistas que levámos a cabo a algumas dessas raparigas dão-nos conta de episódios de sexo “algo violento” (“gostava de apertar o pescoço”, dizem-nos), mas consentido.


A gravação da chamada telefónica que ele fez à Polícia naquele dia diz apenas:

- Têm de vir depressa, ela está morta, não sei o que se passou.


O relatório policial é parco em descrições da vítima:

“Mulher de cerca de 30 anos, branca, desnuda, sem tatuagens.”


O indivíduo cumpre uma pena de 10 anos de prisão por homicídio por negligência (grosseira) [o parêntese não é nosso; está na sentença] no estabelecimento prisional de Coimbra. É descrito como um tipo pacato e calado.


 


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