Mutismo Seletivo


- Como é a voz da nossa filha, Aurora?

- Triste, Carlos, muito triste...

 

A menina não falava. Ou melhor, só falava com a mãe, desde que não houvesse gente por perto e dizia muito pouco. O essencial.

 

Foi por volta dos 7 anos. Todos os mecanismos de emergência foram acionados: médico de família, psicóloga escolar, assistente social, terapeuta da fala, pedopsiquiatras, clínicas privadas com nomes pomposos, curandeiros e afins...

 

Foram ouvidos todos os diagnósticos (stress pós-traumático e mutismo seletivo à cabeça) e até que não era possível fazer qualquer diagnóstico.

 

Não fosse o facto de não falar, Leonor era uma criança normal. Aprendia bem (quase não precisava da etiqueta “especial” ao “ensino” que lhe era ministrado), gostava de brincar com os outros meninos e de ver desenhos animados.

 

Quando questionados, os pais exasperavam: não havia maus tratos ou violência doméstica e, por mais que puxassem pela cabeça, não se lembravam de qualquer episódio que pudesse ter constituído um choque ou trauma para a menina. Aliás, o relatório social estava recheado de testemunhos abonatórios a Aurora e Carlos: pais carinhosos e incansáveis, atenciosos, trabalhadores e humildes...

 

Carlos trabalhava há vários anos numa serração, era estimado pelos patrões e ganhava corretamente. Aurora acumulava empregos: trabalhava a meio-tempo em casa de uma família, cuidando de um idoso, e fazia limpezas em mais 4 casas, em dias alternados; era um pau de virar tripas, enérgica e focada na esfregona, no aspirador e no pano do pó.

 

Quando chegavam as férias escolares, e não sobrando dinheiro para ATL ou outras atividades lúdicas, Aurora levava Leonor para casa dos patrões. Obviamente, a menina não incomodava; sentava-se num qualquer canto com um caderno de colorir, lápis de cores ou um livro e ali ficava horas, se necessário fosse.

 

Naquela tarde de verão, Aurora pediu à Dona Helena se a Leonor podia ficar na biblioteca da casa. Era dia de fazer faxina na cozinha, onde a menina habitualmente se sentava, sossegada. Helena assentiu prontamente. Sabendo que Leonor não falava, não a iria interromper nas suas leituras e escritos.

 

Depois de uma hora a deitar o olho à menina, Helena acercou-se dela, sentou-se a seu lado e encetou a conversa:

- O que estás a ler? [silêncio]

- Também li esse livro! Adorei! [silêncio]

- Posso contar-te um segredo? Sei que não vais contar a ninguém... [silêncio e olhar inquisidor]

- Ele morreu... [silêncio e franzir de sobrolho]

- O homem que nos fez mal... [a menina olha para o chão, distante...]

- Vou mostrar-te...

Helena levanta-se, dirige-se à secretária e regressa com o telemóvel. Faz uma pesquisa e mostra a Leonor aquilo que parece ser uma entrada necrológica de um jornal.

- Olha, saiu no jornal, vês? Ele morreu. Já não nos pode fazer mal.

Leonor olha para Helena, timidamente e esboça um sorriso.

Helena ia abraçar a menina quando Aurora entrou na biblioteca.

- Já tivemos aqui uma longa conversa, eu e a Leonor!

Aurora solta uma gargalhada.

- Imagino...

 

Nesse mesmo dia, já em casa à mesa do jantar, Leonor diz:

- Que boa está a sopa, mamã!

Há 4 anos que Carlos não ouvia a voz da filha.

 

“O Conselho da Europa indica que uma em

cada cinco crianças é, foi ou será vítima de

violência sexual durante a infância.”

 

De forma tentada ou consumada, essa violência é, com frequência, perpetrada por próximos da família, sem que os pais possam exercer a proteção que lhes compete. 




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