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Condicional

Se me amasses além de ti, sentirias esta dor. Acorrerias aos meus pedidos de socorro. Quererias ouvir as minhas lágrimas. Não seriam necessárias palavras, explicações ou argumentos. Nem paráfrases ou reformulações. Palavras… São vãs, afinal. Faltam gestos, atitudes, ações. Condicional. Tudo acaba por estar sujeito a cláusulas de exclusão. Se me amasses além de ti, eu quereria estar contigo, aninhada nos teus braços, chorar no teu colo… Mas há sempre condições, sobreposições, estados a defender. Tal como a maioria dos sentimentos elevatórios, a incondicionalidade não existe, é um conceito falacioso, ilusório… Nem sequer efémero. O nosso reino é sempre mais importante. A esfera que vamos construindo de nós próprios, mais brilhante. Somos sempre melhores que o outro. O outro é confuso, complexo, estranho… A partir de um dado momento, deixamos de escutar, nem aguardamos pela nossa deixa, só a nossa resposta interessa. A nossa resposta é sempre melh

Sexto encontro com o escritor

- São tristes as personagens dos seus livros. A felicidade não o atrai? - A felicidade é um não-conceito. Não tem limites estanques, é escorregadia… - Não é possível escrever sobre ela? - Sim, é possível. O que não é possível é fixar na escrita uma personagem feliz. Feliz como? Para quem? Com base em quê? Nas minhas representações de felicidade? - Não há traços gerais para a felicidade? - A felicidade é um paradoxo: podemos estar felizes na perda e infelizes no ganho… - É então tributária do nosso equilíbrio emocional? - Não. É tributária de um estado de serenidade, de quase passividade, de um “tanto me dá que chova ou faça sol”… - Inércia? - Não. Aceitação. Aceitação do bom e do mau. Sem êxtases. Sem depressões. - E onde vai buscar essa serenidade? - Quem lhe disse que eu era feliz? - Parece entender do assunto… Pelo menos, reflete sobre ele. - Mais uma falácia. Reflito sobre ele porque quero alcançá-la, essa serenidade. Quando somos felizes,

Um sentido de estar

Hoje, estive contigo, depois de tantos anos… Quando imaginava esse potencial momento, imaginava-o mais difícil, mais tenso. Uma quase impossibilidade… Mas não foi assim. Os reencontros nunca são como nós os imaginamos… Não escolhi a melhor combinação do meu armário. Não fui ao cabeleireiro. Não ensaiei nenhum guião. Estivemos. Simplesmente. Respirei fundo e entrei na pastelaria à hora combinada. Vi-te de imediato. Não fiz qualquer tipo de constatações. Estarias mais velho? Mais gordo? Com menos cabelo? Nem sei. Estavas… apenas. Confesso que, numa fração de segundos, tive vontade de te abraçar. Mas, pela primeira vez na história da nossa estória, havia um cenário, figurantes e ponteiros de relógio. Pouco lembro das palavras que trocámos. O essencial foi comunicado com o olhar, alguns gestos inquietos, sorrisos esboçados, ténues… Em que momento da nossa história nos largámos da mão? Que palavras foram ditas? Que silêncios cortaram? Que ações foram julgadas?

Teste de Maturação

1. Tira um bago, mas não aleatoriamente. Se o tirares do vértice do cacho estará forçosamente mais maduro. Vai busca-lo à base do cacho, no meio da folhagem; quanto mais escondido, melhor. 2. Esmaga-o entre o polegar e o indicador. Observa a polpa que ficou colada nos dedos. Ficaram manchados? Anota. 3. Chupa os dedos e saboreia lentamente. Que sensações? Anota. 4. Cospe na mão as grainhas. Estão verdes? Estão castanhas? Anota.

Reunião Havaiana

Lembro-me de estar sentada na grande sala de reuniões, impaciente, à espera de participantes atrasados. Lembro-me de pensar que nunca entenderei a falta de pontualidade, mas que, neste caso, não podia perder a calma, pois precisava deles… Lembro-me de ter dito: - Vou à casa de banho. Volto já. Lembro-me que, na casa de banho, uma empregada de limpeza se acercou de mim e me disse: - Tenho de lhe mostrar uma coisa. É importante. Lembro-me de a ter seguido, de atravessarmos o átrio do que parecia ser uma universidade e de desembocarmos numa grande metrópole ruidosa. À nossa volta, as pessoas falavam inglês. Lembro-me de termos caminhado umas dezenas de metros e da empregada de limpeza – que já não trazia a bata e era agora um homem – me estender um cartão que parecia ser um passe de transportes públicos e me fazer sinal para entrar num autocarro abeirado numa paragem. Lembro-me de subirmos. O autocarro estava cheio de gente, muitas pessoas em pé. Era daqueles

A Fã

Conto (Parte II) (A Parte I foi publicada aqui a 26 de abril de 2014) Entrei no posto de turismo com estas perguntas na cabeça: “mas porque há-de alguém querer visitar a igreja de S. João Batista na terra Dele? Porque é que a placa não O menciona?”… Solícita, a senhora do posto de turismo deu-nos um mapa com a localização dos seus sítios favoritos: a sala de espetáculos onde atuou pela primeira vez, o seu restaurante preferido, o parque onde costumava andar de bicicleta… Os locais eram próximos uns dos outros e a vila pequena, pelo que a visita seria rápida. Num dos cantos do posto havia uma estante com uma guitarra autografada, fotografias diversas, livros, alguns objetos pessoais. Eu estava tão anestesiada que mal dei pela minha irmã perguntar onde é que Ele morava. Voltei à Terra para ouvir a senhora dizer que não estava autorizada a divulgar essa informação. Agradecemos, saímos e fizemos o tour sugerido pelo mapa turístico. Um dos momentos altos deu-se quando a

Mudança

Haverá partes de nós que nunca mudam? Ouvimos com frequência: “Tu não mudas mesmo!”, “Há coisas que não mudam…”, “Foste sempre assim!”, etc. Por norma, ouvimos essas falas num contexto pejorativo, como se não mudar fosse uma espécie de defeito… Gostamos todos de acreditar que somos seres evolutivos, a caminho de seres evoluídos. Por conseguinte, não gostamos muito de ouvir esses reparos e tomamo-los como uma crítica… Na verdade, são uma crítica… De igual modo, quando somos nós a proferi-los, fazemo-lo com o intuito da crítica, de apontar o defeito. Então, se temos todos mais ou menos consciência desses factos, porque não mudamos deveras? Uma possível resposta é porque estamos convencidos que estamos certos e que o outro é que está errado. E o que sustenta essa certeza? O que nos deixa convencidos de estarmos certos e o outro errado? Talvez o simples facto de não querermos mudar porque é mais fácil acreditar que a nossa posição está correta, porque mudar

Sequelas

A inconstância corrói. A incerteza vai deteriorando a superfície de uma força aparente. Num dia, damos por nós a pensar em todos os contornos do plano B, C, D… No que faremos, nas atitudes que tomaremos, nas posições que assumiremos. Noutro dia, investidos de uma positividade sem origem conhecida, achamos que tudo é um disparate, que tudo vamos vencer, que tudo vamos conquistar. Depois, há os dias assim-assim. Os que começam bem, mas durante os quais o desgaste e a impaciência se instalam. Ou o contrário: os dias que começam mal, mas que são gradualmente povoados por pequenas conquistas, pequenos sorrisos, pequenas palavras. Difícil também é gerir esta nossa fase negra em confronto com os outros. Aqueles que acham sempre que somos exagerado/as, que gravitam à nossa volta um milhão de pessoas mais desafortunadas, mais pobres, mais doentes, mais mal-amadas… Como se não soubéssemos… E fingimos que sim, que de facto é assim, mas continuamos, internamente, a destilar

Perguntas sem valor

Quero acreditar que tudo tem um propósito. Preciso acreditar que tudo tem um propósito. Tenho manipulado o corpo até à exaustão para apaziguar a mente. Para não lhe dar o tempo de se rebelar. Manipular a mente é tarefa para Eleitos e eu não nasci virada para a lua. Não me importa, contudo. Nunca gostei de linhas retas. A hiperatividade tem sido companheira e compreensiva. Quase dissipando o vácuo gerado pelos sonhos desfeitos e a desfazer-se. Ponho em causa tudo o que leio, tudo o que vejo, tudo o que ouço, como se numa plataforma à parte me tivessem plantado. Porquê? Valerá a pena perguntar? Não. Onde me perdi? Que desvios tomei para me trazerem aqui? Valerá a pena perguntar? Não. O Filósofo dizia que, sobre o que não sabemos, devemos calar. Acrescento que sobre o que não controlamos, devemos aceitar e calar. Qualquer reação ou tentativa de análise é cansativa, estéril. O que me move? Talvez a convicção de que um dia valha a pena per

Quinto encontro com o escritor

- No seu último romance, a personagem Hilário refere-se à desilusão da inconsistência. Já foi desiludido? - Há uma espécie de contradição, de não sentido nesse conceito… Mas as pessoas gostam de etiquetas. - Como assim? - Veja: acha mesmo que se pode falar de desilusão? Não é a inconsistência uma característica genuinamente humana? - Talvez… - Todos esperamos do outro que seja consistente, que esse outro proclame um valor e o ponha em prática. É sabido dos manuais de desenvolvimento pessoal que a consistência traz progresso, evolução… Praticamo-la? Até podemos pensar que sim, mas somos facilmente desviados dos nossos intentos. - Não temos, portanto, legitimidade para nos desiludirmos com as inconsistências dos outros, é isso? - Até certo ponto, sim. Se o outro proclama ser desapegado de bens materiais, mas faz apanágio do seu estatuto e pede um aumento de salário, se diz ser humilde e passa a vida a vangloriar-se dos seus feitos e sucessos, é natural que sintamos a desi

Tanto

Há tanto que fazer! Tanto que ler, que escrever. Tanto para arrumar, organizar, planificar. Tanto que observar, que apreciar. Tanto que ouvir, que explorar. Tantos dias, tantas horas, tantos minutos. Tantos planos, tantos sonhos. Tantas músicas, tantas danças. Tantos cheiros, tantos sabores. Tantos filmes, tantos passeios. Tantas conversas, tantas partilhas. Tantos abraços, tantos beijos, tantos toques. Tanto, tanto, tanto!... De manhã, ao acordares, faz uma lista dos teus tantos. Prometes? Não deixes que se instalem nos interstícios dos teus tantos a tristeza e as memórias. Estas últimas, boas ou más, deixarão sempre um travo amargo, pela dor ou pela saudade. Decora a lista dos teus tantos. Faz dela o teu mantra sagrado. Prometes?

A Fã

Conto (parte I)  Quando me recordo daquele dia, não posso deixar de sorrir. Nunca poderei esquecer as emoções daquela manhã. Foi há 20 anos. Aquelas viagens eram minuciosamente preparadas. Desde o plano de poupança anual, ao roteiro dos locais a visitar. Os meus pais, ambos professores universitários e hippies em outra vida, esperavam o dia da partida como uma criança espera o dia de Natal. Acreditavam que estas viagens eram a melhor herança que nos poderiam deixar, a mim a à minha irmã Sally. Não estavam errados. Obviamente, as expetativas eram distintas para cada membro da família. O meu pai queria ver os museus e os monumentos, pela pintura e a arquitetura. Fazia-nos perguntas ao jeito de um professor primário: que estilo? Que escola? Que época?... A minha mãe queria sobretudo conhecer as livrarias, comprar livros, fotografar elementos decorativos dos hotéis, restaurante, lojas e edifícios públicos, fotografar montras e cenas culturais. A Sally alinhava em alguns

De Costas

A primeira vez que te vi, estavas de costas. Olhavas para um dos meus quadros – o meu preferido – com a cabeça ligeiramente inclinada para a direita, o cabelo escorrido, em V, pernas juntas e cruzadas. Estavas de leggings e de túnica. Calçavas umas daquelas botinhas rasteiras com pêlo que pareciam saídas de uma loja da Serra da Estrela. Tinhas um copo de espumante na mão direita que seguravas descontraidamente pela parte superior. Destoavas do conjunto. Não só pelo dress code. Soube logo que eras tu. Tínhamos trocado algumas mensagens pelas redes sociais e tinhas-me prometido que virias à minha próxima exposição. Assim que me libertei de uma ronda de elogios circunstanciais, fui ter contigo e chamei-te pelo nome. Correspondeste. Trocámos algumas palavras não circunstanciais até ser novamente solicitado pelos muitos visitantes da galeria. Nunca mais te larguei do olhar. Nunca mais esqueci aquela tua imagem, de costas. Podem passar-se vários anos, várias perspetivas,

Quarto encontro com o escritor

- As suas personagens são todas imperfeitas, feias, infiéis, mentirosas, hipócritas… Não gosta da perfeição? - Não sei ficcionar sobre o que não existe. - Nunca lhe aconteceu querer criar uma personagem sem mácula? - Isso daria muito trabalho… As personagens que crio são modeladas com partes de quem se vai cruzando comigo, com as facetas deste e daquele. - E nunca se cruzou com a perfeição, portanto?... - Não. Anda por aí? - Existe? - Provavelmente. Fala tanto nela!...

Analepse

Como se todos estes anos não tivessem acontecido. Na parte mais eu de mim, continuas… A energia da juventude, mas do agora, invade-me, estremece-me… A pressa de ocupar o teu espaço físico, na certeza de ocupar o espiritual, de experimentar o teu toque, é a mesma. Como se esta parte de mim tivesse adormecido num conto de Terras Frias, e acordado, suavemente, numa manhã amena de primavera, sem que o cenário e as restantes personagens, secundárias, se tivessem apercebido. Analepse… Este Nós com pulsar próprio e sincronizado à fração do segundo que de facto vivemos é ubíquo, gigante, avassalador e, ao mesmo tempo, terno, sereno, tranquilo…

Teoria da Disponibilidade

Andei anos a tentar entender porque te aproximaste de mim.  Não fazia, não faço, nem nunca farei o teu género. As respostas às nossas dúvidas mais inquietantes chegam, muitas vezes, quando já desistimos de as procurar e nas circunstâncias mais incoerentes… A maturidade tem-me convencido de que, em caso de dúvida, o mais sensato é virar a página, desistir… A mulher que querias, que queres e que sempre quererás, não existe, mas vais continuar a procurá-la, porque estás convencido que a mereces e que a podes encontrar. Até lá, ou seja, até sempre, investirás em tentativas falhadas, em quem estiver disponível e à mão de semear. Eu só estava disponível. Descobri isso hoje, na sequência da um zapping, ao aterrar na TV Memória. “Quando não estou com a rapariga que amo, amo a rapariga com quem estou.”