Mensagens

A mostrar mensagens de 2010

Frutas e Bestas

Gostavas de sair pela madrugada, com os primeiros. Desde que fosse para as ruas de uma capital, de uma metrópole. Corria-te nas veias tudo o que começa por “metro-“. Indistinta na multidão era como gostavas de te sentir. Gostavas que outros te procurassem e não te encontrassem logo, até ao desespero de um telefonema (- Onde estás? Não te vejo. De que lado da rua estás? Perto de quê? [pergunta de retórica: tu nunca estavas perto de nada]). O que não sabias era que alguns outros – não creio ter sido o único – há muito te tinham identificado e apenas queriam prolongar este momento ímpar de ti à distância. Conversar contigo era mergulhar num quebra-cabeças. Era encontrar não um sentido, mas possíveis explicações. Ter a certeza de ser ouvido e aproveitado. Andavas à procura de respostas. Não muitas: duas. 1. Por que motivo uma fruta que ontem te parecia suculenta, te parece hoje mirrada e amarga? 2. Por que motivo se passa tão rapidamente de bestial a besta? Gostavas de explicar que, embora

Parole, Parole

Sobre-vivo delas, à unidade, ao quilómetro. Enchem-me as linhas e a existência. Sorvo-as dos livros apontados ou intuídos, das legendas do meu cinema. Traço-as, desenho-as, digito-as à velocidade e ao ritmo da minha sede. Gosto de as ver, de penetrar nelas com o olhar, de as distinguir e arrumar, de as alinhar… Teria razão Bernardo Soares? Só estão completas quando ouvidas? Das palavras ouvidas, começo a só gostar das que emanam de uma pauta, ditadas que são por outra melodia… As outras, as ditas, proferidas, anunciadas, não deixam rasto à flor da pele, não têm palavra. São cruéis e mentirosas, voláteis e curtas. Não vinculam. Não respeitam. Gosto, cada vez mais, das sussurradas, dos mantras, das silenciosas. Das que se amontoam no papel, no monitor ou as que saltam no ecrã da tv. Gosto dessa materialidade, de poder tocá-las, desmanchá-las. As outras, como se diz, voam com o vento, com a expiração do expelidor. Não se dão. Não têm palavra.

C'est bizarre

C’est bizarre, sinto-me anestesiada, amorfa, sem saltos, sem erupções. Já nem o cansaço me toma; quero estimulantes sem cafeína, tarefas com horas de início e de fim. Já nem me ocupa a ocupação dos outros ocupados. Já nem me ofende a ofensa dos outros ofendidos e ofensores que nunca ofendem. Pratico o arrefecimento, o distanciamento, a análise silenciosa, a margem de segurança. Pratico o lado direito da coluna, a coluna da direita, o direito à coluna. Deixei de me sentenciar, de me marcar tpc, de me prender às trilogias. Deixei? Passei a compreender as luas, os tons, a falta de acentuação, os silêncios e as intervenções fora do tempo. Deixei. Já não me interpela a efabulação alheia, a ilogicidade. Let it be. Agrada-me esta lua de mel comigo, com o meu friso cronológico, com os Outros. C’est vraiment bizarre.

O Tabuleiro

- Acho uma perda de tempo ficar horas a fio a olhar para um tabuleiro... - Então, não sabes jogar xadrez? - Não... Deveria? - Então... Vamos falar do tempo: "Ai, já está tanto frio, o Inverno chegou mesmo em força, já nem apetece sair de casa, não gosto nada deste horário de Inverno, quem dera o Verão, as sandálias, as mangas curtas..." - Costumávamos ter conversas interessantes... - Então, sugere um tema. - Isso não funciona assim, Palmira. - Então, vamos falar da crise: quais são as tuas soluções para a crise? - Não tenho soluções para a crise. - Não? - Não. Mas também não ando a lamentar-me pelos cantos. - Então, vamos falar de quê? - Costumávamos ter conversas interessantes... Ensinas-me a jogar xadrez? - Ah! - "Ah" o quê? - Xeque-mate!

Mini-conto de Outono

Cheguei à Caparica quase de madrugada, à hora dos surfistas. Para quem vem da cidade, o cheiro a maresia é bom, mas não suficiente. Preciso com urgência de um pequeno-almoço. Estaciono na marginal, junto ao hotel de quatro estrelas. Para surpresa minha, encontrar um café aberto foi mais fácil do que esperado. Não falta de pão fresco (como teria sabido bem o pãozinho fresco!), vai o bolo de arroz e a meia-de-leite. O rapaz do balcão está visivelmente maldisposto; não sei se da hora, se da vida… Entra o patriarca, com cara de patriarca, maldisposto, não sei se da hora, se da vida… - Não vais levar o puto à escola? - Já liguei. Ninguém atende. Deve ter o telemóvel desligado. - Ligaste para casa? - Hein? - Pró fixo? - Não tem. - Então e a que horas é a escola? - Hoje não há escola. Vão a um passeio fazer paintball… - Então e o avô não pode ir levá-lo? - Qual avô? - O outro. - Poder, podia… - Boa vida… [entre dentes] Eu vou lá buscar o puto. Toco à campainha. - O.K…. - F

Singela homenagem à Republicana Ana de Castro Osório

Imagem
Precisamente um século antes de eu ver a luz do dia nos arredores de Paris, nascia, em 18 de Junho de 1872, Ana de Castro Osório, em Mangualde, aquela que viria a ser a minha “terra adoptiva”. Tudo o que se possa dizer sobre esta grande escritora, feminista e republicana é redutor, sendo o objectivo deste breve apontamento apenas e tão-somente o de fazer uma singela homenagem à fundadora da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, movimento de que Ana de Castro Osório foi a principal impulsionadora. Conhecida como a fundadora da literatura infantil em Portugal, deixou dezenas de livros didácticos para crianças e contos infantis; acreditava que a inclusão nos livros escolares de rimas e contos tornava as crianças mais criativas e receptivas à aprendizagem. Uma convicção hoje instalada, mas revolucionária para o seu tempo. Também escreveu romances, novelas e peças de teatro. É também ao Feminismo Português que o seu nome fica ligado. Em 1905, escreveu o primeiro manifesto feminista do

Ritz

Entrou na vetustamente elegante sala do Ritz. A alcatifa preta estampada de nódoas ocultas despertou a sua rinite. O cheiro a roupa do baú da avó Dores transportou-a à infância ou ao que lhe pareceu ser a infância. Aquele papel de parede que tanto entra nos seus sonhos! Mas o que tem a alcatifa a ver com o papel de parede? Ah! São revestimentos, coberturas… Como a roupa… Hoje, até a cabina está a condizer. O Sr. Martins [nome fictício] anda há anos a dizer que vai “trocar o material”. Bastava olear as dobradiças, já era um começo. Depois da conferência, apresenta-se um livro. Mudança de cenário. Entra num programa estilo Carlos Pinto Coelho. 150 pessoas a olhar para ela. Detesta holofotes. Até no Ritz.

Fim de Viagem

Cheguei da viagem com partida e chegada incertas. As malas ainda estão a um canto, Por abrir, por desmanchar… Vou adiando a hora de arrumar, De oferecer as recordações trazidas, Na esperança de acordar da realidade e voltar ao sonho. Não levei livro de bordo ou diário de viagem. Invejo os que fotografam cada momento em alta resolução! Fica apenas a nostalgia das sensações, A desilusão do acabado. De regresso ao nada, na esperança do tudo. Porque temos de regressar?

Simulacro

Há dias, revisitei Baudrillard e a sua teoria do simulacro. A teoria deste filósofo e sociólogo [aqui está uma dupla que costuma dar bons resultados!] francês tem por base a ideia de que o real é substituído por imagens (ele que também era fotógrafo, sem acaso) e de que o referente vivido desapareceu. Num período em que ando particularmente introspectiva e “analista”, dei por mim a procurar evidências dessa teoria à minha volta. Fiquei espantada com a quantidade de resultados da minha pesquisa! Só ainda não percebi onde me posiciono nesta realidade virtual matrixiana… Refiro-me a indivíduos, se é que esse conceito é válido no mundo das imagens e dos simulacros. Cópias de “pessoas” cujo original se perdeu numa infância malsã, numa juventude ou adultez (perdoem-me o neologismo, mas vem mesmo a calhar) maquilhada, sem percalços de maior. Pessoas que vivem num paralelo onde o cenário envolvente – ao jeito do videojogo SIMS – é por elas seleccionado e “construído” (aviso já que, dado o tema

Enjoo

Ando a afastar as moscas dos restos de comida, A espantar os pássaros à volta da piscina, A limpar gavetas e memórias, A desfragmentar o disco… Em estado de lenta depuração. Rodeada que ando de gente tão importante, Que se auto-promove, Debitando demagogias e citações alheias… Que abafam o meu silêncio reconstituinte, Não me deixando calar. Por um dia, Gostava de viver numa tribo amazónica, Purgar-me com café, Ou num qualquer navio em trânsito na Somália Para caçar piratas. Pena eu enjoar tão facilmente…

Mini-conto de Verão

- A tua mãe era rápida, David. - Rápida, pai? - Sim, sempre à frente da sua sombra, sintonizada em tudo. Marcava o código quando a máquina ainda pedia para aguardar… - Fala-me mais dela, pai. - Era linda. Mas isso já sabes. Já to devo ter dito um milhão de vezes. - Para não falar no milhão de fotos… - Pois. Mas era uma beleza “não convencional”. - “Não convencional”? - Ela tinha uma dessas T-shirts que oferecem nas perfumarias para promover marcas de cosméticos. Justinha, a realçar a suas imperturbáveis formas. Só me lembro que era uma marca americana. Como lhe assentava bem o raio da T-shirt! “Non-conventional beauty”… - O teu inglês já viu melhores dias, pai… - A tua mãe falava um inglês perfeito. E espanhol. E Italiano. E quantas mais línguas viessem. - Talvez tenha herdado isso dela. - Sabia o nome das capitais todas e os estilos arquitectónicos, gostava de meter conversa com os chefes dos restaurantes e dissertava sobre ervas aromáticas. Tanto lia Tolstoi ou Dostoievski, como troc

Taxistas II

Reflectia Isabel sobre os diferentes mecanismos de estimulação lacrimal quando chegou ao Porto, no último Alfa. - Boa noite. Quero ir para um hotel que tem “Artes” no nome… - O “Eurostar das Artes”, menina? - Esse é em Cedofeita? - É, menina. - E não há outro hotel com “Artes” no nome? - Não, menina, que eu saiba… - Então é esse. Vamos. A trepidação do táxi sobre os paralelos da rua do Heroísmo acordou Isabel. - Tenho a obrigação de conhecer melhor o Porto. Vivi aqui quatro anos. Fiz cá a faculdade… - Ai é, menina? - Sim. Olhe, vivi aqui muito perto, na rua António Granjo. - A sério? Também vivo no Bonfim, menina, e tenho um grande amigo que vive na rua António Granjo, o Jorge. Vive naquela casa amarela que dá para o Horto Moderno. - Está a brincar?! Eu vivi nessa casa! Não me diga que o seu amigo Jorge era filho do Sr. Jorge Meireles? - Exactamente, menina! - Não acredito! Andei com ele ao colo, valha-me Deus! Ia para casa deles ouvir o Sr. Meireles tocar piano! Como é que eles estão?

Coffee Break

A Lisboa pós-Santo António acorda tímida… Parque das Nações – Cabo Ruivo – Marvila – Bela Vista – EUA – Campo Pequeno – República – Saldanha – Marquês de Pombal – Rua Castilho: limpo, 10 minutos. Adoro a nossa capital com cheirinho a férias. Como sempre, sou das primeiras a chegar. Sento-me no hall do hotel e mergulho no meu livro até despertar o buliço do congresso, até abrir o Secretariado para as credenciações. «First of all, congratulations to Ghana!». Foi este o “pontapé de saída” da Sessão de Abertura. Na terceira intervenção, o Embaixador António Monteiro inicia assim a sua alocução perante uma plateia de africanos: «Ainda bem que falo hoje e não amanhã depois do Portugal /Costa do Marfim…» Em intervenção pedida aquando da sessão de perguntas e respostas, um participante da Costa do Marfim pediu a palavra para dizer que tinha consultado o maior feiticeiro do país e que este lhe tinha assegurado que a Costa do Marfim ganharia… Desengane-se quem pensava que futebol e estratégia in

A vida depois

A vida d.X. Depois do desconhecido.

Vertigem

A cem quilómetros por hora, Deambulam pela teia que fui tecendo. Não os quero, mas insistem e impõem-se. Procuro cortar os fios de ceda, mas estes, Estranhamente, São inquebráveis, rugosos, repelentes. As imagens distorcem-se, A cobertura de rede diminui, O tradutor automático não é fiável. Perco o contacto E caio do alto, em câmara lenta, Tranquila, na perspectiva da rede, Lá em baixo.

Teoria da Viagem

No ímpeto de vir à superfície respirar ar renovado e sair das profundezas inebriantes do 2666, li a Teoria da Viagem – Uma Poética da Geografia , do Filósofo francês Michel Onfray. Por circunstâncias que já se tornaram habituais, li o pequeno livro entre duas viagens, uma de ida e outra de volta. Ler um livro sobre a viagem numa viagem, nada de mais apropriado: dá-nos a ocasião de estar em contacto directo com a matéria de estudo e depura as nossas reflexões. Curiosamente, esta leitura-intermezzo não me trouxe grandes respostas, mas teve a virtude de me pôr a pensar no sentido das inúmeras viagens que tenho feito por este mundo fora. Não tenho cidades/cidadãos, museus, monumentos, gastronomias, tradições, paisagens favoritos, e não tenho jeito nenhum para escrever sobre as minhas viagens… Mas tenho um acervo de flashes, episódios, detalhes, olhares, cores, impressões que nunca mais acaba. Fiquei com duas certezas: sou irremediavelmente nómada e, como a maioria dos viajantes, consciente

Simplesmente Mulher

Neste dia em que se celebra a liberdade, acabo de ler um artigo no mínimo inspirador. O tema é o do “Girl Effect” e encontrei-o na revista Gingko (para quem não conhece, é uma publicação mensal sobre equilíbrio pessoal, profissional e ambiental). De forma resumida, o artigo visa provar os benefícios do “empoderamento” [bolas, não se arranja melhor tradução para isto?!] no feminino. Alguns pontos de reflexão: - Segundo Luís Rochartre do Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável, as mulheres no activo reinvestem no seu seio familiar uma boa percentagem do que ganham. Assim, salvar uma mulher em risco equivale a salvar uma família, uma comunidade, um país. - Ainda segundo o mesmo autor, nos negócios, as mulheres são mais responsáveis face às suas obrigações, nomeadamente quando contraem empréstimos, e canalizam os seus lucros para o bem-estar das suas famílias. Os homens entram noutro tipo de jogos sociais… - Um exemplo ilustrativo: o Programa de Alimentação Mundial decidiu

Mini-conto de Primavera

Por esses dias madrugadores e longos, Helena vivia oprimida pelo tempo. Nem mesmo o seu apurado sentido de organização, o seu carácter pragmático e o seu habitual optimismo ajudavam. Num dos raros momentos em que trocou dois dedos de conversa com uma colega de trabalho na cafetaria da empresa, Helena – de espírito aberto e curioso – pensou ter encontrado uma saída para o seu labirinto emocional: - Vê lá tu, vamos em Abril e este ano já perdi as estribeiras três vezes! Isto não é normal. Deve ser das insónias… Eu nunca perco as estribeiras! - Ó Helena, tu precisas é de uma cura cósmica. Tens de realinhar esses chacras! Ouvi falar de uma rapariga muito boa, lá para os lados de Carcavelos. Eu arranjo-te o contacto. - Achas?! E foi assim que Helena decidiu, entre hesitação e curiosidade, fazer apelo a forças desconhecidas. Poucos dias depois (depois de uma luta infernal com a sua agenda para encaixar a “experiência”), entrava numa salinha de pouco mais de 8 m2, acolhida por uma curadora có

Garagem Atlântico

Há 15 anos que não entrava lá. Cheguei ao balcão da Transdev na vetusta e degradada “Garagem Atlântico”, Porto, por volta das 13:20. As colunas de som debitavam em catadupa os destinos dos autocarros já estacionados nos respectivos cais. Imperceptível. O som era tão mau que dei por mim a explorar visualmente os tectos do local à procura das ditas colunas, na subconsciente esperança de uma ligação directa entre canal auditivo e visual. - Boa tarde. A que horas sai o próximo Expresso para Viseu, por favor? - Às 14:00, menina. - Então, é um bilhete para Viseu no próximo Expresso, por favor. – peço eu estendendo o cartão Multibanco. - Esses cartões aqui não prestam. – responde-me o funcionário através do círculo sem vidro e apontando para um autocolante que indica que os pagamento por Multibanco não são aceites… - Tem ali a coisa… - prossegue, apontando para a caixa Multibanco implantada a uns 10 metros. - Ah… OK. Então já venho… Enquanto levanto dinheiro, tento novamente descodificar os d

Poesia de outros de que gosto III

L'obscurité des eaux Escucho resonar el agua que cae en mi sueño. Las palabras caen como el agua yo caigo. Dibujo en mis ojos la forma de mis ojos, nado en mis aguas, me digo mis silencios. Toda la noche espero que mi lenguaje logre configurarme. Y pienso en el viento que viene a mí, permanece en mí. Toda la noche he caminado bajo la lluvia desconocida. A mí me han dado un silencio pleno de formas y visiones (dices). Y corres desolada como el único pájaro en el viento. Alejandra Pizurnik

A Procura

Fui hoje à procura de um estado de alma. Procurei-o a duzentos quilómetros de casa, por entre sólidos geométricos. Como se a distância mo trouxesse de volta, Como se o palpável mo tivesse guardado. Durante a busca, perdi a noção do perdido, Achei a noção do novo achado. Que procuro eu afinal? Quanta ambiguidade! Quero encontrar, não quero encontrar, Procuro, não procuro, Ilusão, desilusão. Ora me concentro na procura, Ora me distraio nas conquistas dos novos achados. Conquistas que me afastam, cada vez mais, Do procurado estado de alma. C'est la saison des pluies La fin des amours Ainsi sous la véranda je regarde pleurer Cet enfant que j'ai tant aimée C'est la saison des pluies L'adieu des amants Le ciel est de plomb il y a de l'humidité dans l'air D'autres larmes en perspective Le temps était de plus en plus lourd Et le climat plus hostile Il fallait bien que vienne enfin La saison maussade C'est la saison des pluies La fin des amours J'ai quitté la

Bases de Dados

Ontem assisti a um seminário sobre “Business Intelligence”. Interessante. Uma espécie de mini-curso intensivo de gestão estratégica para “micro-empresários”… Insistiu-se muito na necessidade de triar, tratar e sistematizar a informação. Conselhos pertinentes numa era de afogamento informativo. Fez-me pensar num curso de Access que fiz há uns tempos atrás, quando surgiu, no gabinete, a real necessidade de gerir a informação. Recordei alguns dos fundamentos básicos da criação de bases de dados: a importância de uma estrutura de base bem “alimentada” e das parametrizações… E como passo a vida a extrapolar, dei por mim a pensar que, talvez, tudo não passe de uma questão de parametrização. Não somo nós o receptáculo (base de dados) de experiências/vivências (informações)? Seleccionamos, triamos, excluímos (“queries”). Aqui também, o resultado depende da parametrização. A única diferença é que somos falíveis e emocionais e nem sempre esta tarefa é executada da forma mais correcta e linear. F

Amarras II

Estou a regressar ao cais. Intermitente… Devagar… A razão guia-me, o lastro, vertical, começa a pesar, Recupero os meus rituais, Procurando o porto seguro; A lucidez vence, timidamente, a incerteza do sonho, Guiada pela rememoração do descontrolo, Da quase-humilhação, do não-eu… Da queda que deixa marcas… E neste caminho de regresso ao cais, Invade-me este contraditório sentimento de Paz, Completude… Procuro e vislumbro as amarras, Estendo-lhes a mão… Certa de que a estadia em terra será feita de vaivéns, De amarras soltas, sonhadoras, irreais, De regressos ao cais, lúcidos, racionais. Mas agora sei. Conheço a onda que me leva. Conheço a onda que me traz…

Silêncios

Há o silêncio sensato dos que não sabem, A contrastar com o ruído dos ignorantes que julgam saber… Há o silêncio pacificador do momento de reflexão, Que se opõe à voz que irrompe e interrompe… Há o silêncio solitário das noites de insónia, Contra os sons matutinos do buliço da cidade… Há o silêncio do consentimento e da resignação, Ao invés do grito e da agressão do verbo… E há o silêncio mortífero, sem contra-peso, O silêncio da não-reacção, da não-resposta, O silêncio-arma que deixa marcas, devagar…

Monólogo

De tanto estudar a linguagem, perdi-me nos seus meandros… A expressão do íntimo fica demasiadas vezes sem resposta, Os meus conceitos não coincidem com os dos meus interlocutores. Peso as palavras, ajusto o registo, dou forma às emoções e… Nada! Deve ser a isto que chamam monólogo.

Poesia Traduzida I

J’écris pour que le jour… J’écris pour que le jour où je ne serai plus On sache comme l’air et le plaisir m’ont plu, Et que mon livre porte à la foule future Comme j’aimais la vie et l’heureuse Nature. Attentive aux travaux des champs et des maisons, J’ai marqué chaque jour la forme des saisons, Parce que l’eau, la terre et la montante flamme En nul endroit ne sont si belles qu’en mon âme ! J’ai dit ce que j’ai vu et ce que j’ai senti, D’un cœur pour qui le vrai ne fut point trop hardi, Et j’ai eu cette ardeur, par l’amour intimée, Pour être, après la mort, parfois encore aimée, Et qu’un jeune homme, alors, lisant ce que j’écris, Sentant par moi son cœur ému, troublé, surpris, Ayant tout oublié des épouses réelles, M’accueille dans son âme et me préfère à elles… (Anne de Noailles, L’Ombre des jours, 1902) Escrevo, para que no dia… Escrevo, para que no dia em que já não viver Se saiba como me agradaram o respirar e o prazer, E que o meu livro conte à futura multidão Como eu amava a vida